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Um ontem que nos explica o hoje

Um ontem que nos explica o hoje

Célebre contista moçambicano, Aldino Muianga, no seu mais recente livro, Nghamula, narra as vivências dos moçambicanos a partir de uma época peculiar da sua história (a guerra da desestabilização, incluindo alguns tempos depois do seu fim), remetendo-nos a várias ideias que nos ajudam a compreender o modus vivendi de um povo. Afinal, para o autor, “Nghamula, o homem do tchova” pode ser qualquer moçambicano.

Na sua obra, Aldino Muianga começa por explicar-nos que Nghamula é um nome, apenas um denominativo que pode ser o seu, o meu ou doutros companheiros perfilados na formatura desta legião que testemunham a marcha dos seus próprios destinos. Será por essa razão que, para nós, Nghamula senão é o povo, então, é uma fiel representação deste.

Compreender-se-á, então, como diz o autor na sua nota introdutória, que estas estórias não são de caserna, porque se o forem, são desta caserna colectiva que é a sociedade, onde as sombras de cidadãos-marionetas deambulam sonambulamente em busca de um universo onde se libertem das algemas que manietam os seus ideais e os seus sonhos de justiça.

Se no mínimo, efectivamente, além de testemunhá-lo, o povo tivesse algum poder para influenciar o rumo que a sua vida trilha, muitas perguntas até então poderiam ser evitadas: que destino é o nosso? Que futuro estes trilhos – incluindo as pessoas que se fazem nossos dirigentes – têm para nos dar? Quem são os condutores das nossas vidas? Até que ponto eles estão comprometidos com a aludida missão?

Esta é apenas uma parte das várias interrogações que inundaram a nossa mente assim que começamos a ler o introito da prosa. O livro, que revela uma escrita madura do seu autor, está prenhe de imagens, cenas e passagens tristemente empolgantes, os quais nos formulam, mesmo que de maneira informal, um convite para a realização de alguma reflexão sobre a condição ser moçambicano.

Na verdade, Aldino Muianga narra a estória de Nghamula, um moçambicano, que nos sugere a representação fiel do povo. O protagonista da prosa é filho de um pai polígamo, tradicionalista, o qual, invariavelmente, faz de alguns dos seus filhos (entendemos nós, o povo) seus verdadeiros enteados.

No contexto descrito, ressentindo-se dos efeitos da guerra de desestabilização, por exemplo, as populações de Morrumbene, na província de Inhambane, como acontecia em diversas partes do país, “viviam um quotidiano de medo e de incerteza”. Aliás, nos demais lugares, “o quotidiano dos camponeses resumia- -se à prática de uma agricultura de sobrevivência, ao cultivo de hortaliças nas proximidades dos riachos ou à criação de animais de pequena espécie”.

No meio disso, “alguns proprietários mais afortunados mantinham pequenas manadas de cabritos e de gado bovino, remanescentes das pilhagens durante as incursões dos insurgentes”.

Ou seja, naquela miséria quase geral, existiam alguns ricos, um dos quais Bernardo Foquiço, o pai de Nghamula, que levava “uma vida com fortes vínculos das tradições. Polígamo convicto, ele possuía três esposas e uma multidão de filhos dos quais desconhecia o número, os nomes e as idades”.

Semelhante à alguns pastores menores recrutados na comunidade, oriundos “de famílias pobres, necessitados de pão e tecto”, com apenas 12 anos, “filho da terceira esposa, Nghamula não gozava de nenhum privilégio ou direitos na hierarquia do clã. Nascera para receber e cumprir ordens, destino fatal dos deserdados da sorte; era apenas uma testemunha passiva do esboroamento de toda a estrutura doméstica”.

De qualquer modo, ainda que Nghamula seja uma pessoa comum e indefinida, como aliás todas as personagens da crónica de Aldino (além dos espaços físicos) parecem ser, a brutalidade com o seu pai tratava parte dos seus filhos, em particular o Nghamula, não pode abrigar ou escudar os germes da violência doméstica nas famílias moçambicanas:

“Todos eram testemunhas do modo como brutalizava os filhos e as próprias esposas. Conforme diziam os que o conheciam, ele era de uma crueldade animal, um felino encarnado em corpo de gente”.

Sábio pastor que era, no roldão de qualquer dia de azar, uma vaca que agitara o manada, depois de uma tentativa falhada para restabelecer a ordem nas crias – “enfurecido, o animal investiu contra ele com muita violência. Indefeso e prostrado no chão, ficou à mercê dos ataques da vaca louca até o seu corpo ficar imóvel e inanimado” – tanto que, como narra o autor, quando Nghamula despertou, “os animais haviam transmalhado. Nas proximidades nem um se via, nem deles um som se escutava”.

De uma ou de outra forma, apesar do mérito de um trabalho de quatro anos como pastor bem-sucedido, o que na visão de alguns leitores traduz a existência de um trabalhador árduo e desmedido, para o seu pai Nghamula não diferia de um fardo. Por essa razão, aquele incidente nada mais serviu senão para consubstanciar um velho discurso de Foquiço: “este rapaz é um madraço acabado, não faz nada de jeito nesta casa, por isso mandei-o para as pastagens… ter um filho assim só pode ser um castigo de Deus!”

Não se admirem então que se servindo do mesmo chicote Nghamula “habitualmente utilizava para disciplinar os animais, o pai vergastou-o com toda a violência de que foi capaz, a entremear blasfémias e maldições”. Refira-se, a violência por que esta personagem passou na sua família foi tão perversa e hostil de tal sorte que no dia da sua partida, “Nghamula, ele próprio, acenava despedidas aos irmãos (…), e eles riam-se desatinados, felizes pela sua partida”.

Se o facto de que – com o abandono à casa do pai – “para trás deixava um marco de sofrimento, humilhações e ingratidão; e, até há algumas horas, a iminência de ser morto às mãos do verdugo que era o seu próprio pai”, abria uma nova página na sua vida. O que não se sabe é até que ponto o sujeito se devia animar com o facto, muito em particular quando se toma em conta que, mais adiante, experimentou situações piores e inenarráveis.

Não nos parece que esta reflexão do protagonista seja obra do acaso: “Tanto quanto me lembre, nunca pratiquei algum acto voluntário que ferisse os outros; mas, até à data, o que sofro são só revezes e o que recebo são só castigos e humilhações pela minha lealdade e obediência. Será que nasci só para sofrer?”

Com 124 páginas, “Nghamula, o homem do tchova (ou o Eclipse de um Cidadão)” é o novo livro do notável contista moçambicano, Aldino Muianga, publicado muito recentemente pela Alcance Editores, em Maputo. Trata- -se de uma (boa) proposta de leitura para as férias.

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