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Um professor no distrito

Um professor no distrito

Rafael Fumo saiu de Maputo para dar aulas num local desconhecido. Ou seja, mudou-se de armas e bagagens da capital para o interior da província de Gaza. Actualmente, reside e dá aulas em Dindiza, sede do distrito de Chigubo.

Um dia antes da data que celebra os professores, @Verdade foi ver como é que são as aulas na Escola Primária Completa de Dindiza e depois conversou com Fumo para compreender o seu dia-a-dia naquele ponto do país.

“É complicado”, disse-nos sem reservas. A explicação, essa, veio depois: “aqui falta tudo, desde cadernos às salas de aulas. Desde que a tempestade arrancou as chapas de zinco daquelas três salas (aponta para um edifício sem tecto) que passámos a dar aulas debaixo destas árvores”. Por outro lado, “nem sempre as crianças frequentam as aulas”. Portanto, “sob o ponto de vista de administração de conteúdos, esse é o maior problema.”

O que separa as crianças das salas de aulas, no entender de fumo, é a falta de água. Ou seja, “um pai pensa nos problemas imediatos e não no futuro”.

Por exemplo, “se eles tiverem de optar entre cuidar do gado e colocar um filho na escola a escolha é simples. Isto porque, por um lado, a população daqui, na generalidade, é criadora de gado e, por outro, a escola não garante rendimentos. Repare que os funcionários públicos daqui, na sua grande parte, são oriundos de outros pontos do país. Desse modo, é fácil compreender que papel tem a escola para esta população”.

A composição da sala na maior parte das aulas revela uma maior presença de raparigas. Algo estranho num distrito, mas não em Chigubo.

“Aqui os rapazes têm de apascentar o gado e as miúdas procurar água. Como aqui em Dindiza, os problemas de água ocorrem em menor escala para o consumo humano, as raparigas têm mais tempo para estudar em relação aos rapazes. Com os rapazes é diferente. Eles têm de percorrer distâncias muito maiores e isso faz com que não venham à escola. É normal que um aluno venha um vez por semana”.

“Quando começou o ano lectivo a minha turma tinha mais de 60 crianças. Hoje tenho menos de 20 alunos”.

No que diz respeito ao ensino, para além da falta de salas de aulas, o facto de não existirem livros é algo que inquieta o professor Fumo. “É complicado ensinar estas crianças, que mal falam português, sem livros”. Por outro lado, “os nossos quadros também não ajudam e pelo menos aqui na sede devíamos ter carteiras para motivar os alunos”.

“Nestas condições não podemos fazer grandes milagres. O aproveitamento escolar, não em termos de passagem de ano, uma vez que ninguém chumba, é fraco”. A sinceridade de Fumo não se fica por aí e vai mais longe: “não temos alunos que saibam ler”.

Não nega que a culpa possa ser do professor, mas pensa que o problema é bem maior. “O professor até pode ser mau, mas não temos como saber porque o cenário da educação propicia o mau desempenho”.

Instado a comentar o que o leva a traçar um quadro tão funesto, Fumo aponta para o estado da escola e baixa o rosto como que a dizer que a forma como as autoridades locais tratam a escola é uma metáfora do futuro dos alunos.

Depois explica: “estas crianças têm capacidade para aprender, mas precisam de algo mais. Um quadro e um pau de giz é muito pouco. Os conteúdos não estão adaptados à realidade delas. Não há como singrarem neste meio. Elas estão aqui para passar o tempo e nós não temos como mudar este cenário”, diz.

Onde vive

Sair da capital para leccionar num distrito sem corrente eléctrica quase 24 horas por dia foi um choque para Fumo. Porém, mais grave ainda “foi descobrir que não havia uma residência para morar”.

Ainda assim, o jovem ido da capital não virou a cara à luta e foi em frente na sua missão de ensinar as crianças de Dindiza a ler e a escrever. No princípio, conta, ficaram magoados por lhes terem dito que teriam uma residência do Ministério da Educação.

Porém, chegados ao distrito a realidade mostrou outra coisa. Não esconde que pensou em largar tudo e voltar para Maputo, mas o facto de ter “saído da casa dos meus pais” para se tornar “um homem” foi mais forte. Aliás, “não há melhor lugar do que este para transformar uma pessoa”.

“Hoje valorizo muito mais as minhas pequenas conquistas. Dindiza libertou-me do egoísmo que habitava em mim”, conta. Esse crescimento, porém, não inibe Fumo de criticar as coisas que julga erradas ou até de questionar, ainda que em surdina, a aplicação de bens públicos no distrito.

Não se esquece, por exemplo, que os painéis solares que dão corrente à residência oficial do Administrador do distrito foram prometidas aos funcionários da Educação e da Saúde.

“O Administrador podia continuar a usar o gerador. Agora ficou com duas fontes de iluminação e nós continuamos sem corrente eléctrica. Nem sequer temos a prometida casa da Educação. Aquelas duas casas (aponta) não sei para que servem”.

Construir a sua própria moradia

Quando Fumo se habituou à ideia de ser professor num lugar sem energia teve de se acostumar à dura realidade de procurar uma casa. Ainda que Dindiza seja um lugar onde o dinheiro não abunda, Fumo nunca pensou em alugar uma casa. “Os preços nem são muito altos, mas todo dinheiro que puder poupar terá grande utilidade um dia”.

Foi, portanto, com tal pensamento que foi ter com um colega e propôs que construíssem uma casa com material local. Engana-se, porém, quem pensa que a moradia custou um balúrdio. O material necessário, sem contar com as chapas de zinco, não custou mais de 1500 meticais. Com mais outros 500 para a mão-de-obra Fumo e o colega desembolsaram 2000 meticais. Volvido um mês já tinham a casa pronta e deixaram de pagar por um espaço. É certo que a casa não tem corrente eléctrica, “mas é nossa”, diz um Fumo orgulhoso.

Onde encontrar água

Em Dindiza nada é fácil, mesmo para um professor primário. Fumo tem de percorrer grandes distâncias para encontrar água. Do local onde reside até as instalações do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades tem de percorrer cinco quilómetros.

A sorte, diz, é que possuem uma bicicleta, o que facilita o trabalho. Porém, “às vezes não temos tempo para ir buscar água e acabamos por consumir a que encontramos”. O que encontramos, na linguagem de Fumo, quer dizer água insalubre e prejudicial à saúde.

Custo de vida

Ainda que a informação sirva para alguma coisa, o que preocupa naquela sede distrital é a ausência de serviços financeiros. “Isso cria grandes embaraços na nossa vida”. Efectivamente, a única forma de um funcionário público ter acesso directo ao seu dinheiro é indo ao distrito de Chókwè onde há instituições bancárias. “É lá onde levantamos os nossos salários”.

Na verdade, ir levantar o salário num lugar que dista 154 quilómetros tem vários constrangimentos. O primeiro, diz, é o custo da viagem de ida e volta para quem aufere um salário magro. “Essa viagem significa um corte substancial no nosso vencimento”, diz.

“Temos de desembolsar cerca de 400 meticais para ir e vir”. Acrescenta diante do nosso espanto: “pode parecer pouco, mas aqui é mais do suficiente para adquirir um saco de farinha”.

Por outro lado, todos funcionários públicos assinaram uma procuração e alguém da administração vai levantar uma parte do dinheiro, valor que não ascende os 100 meticais. “Num distrito onde um saco de farinha de 12 quilogramas custa 350 meticais esse dinheiro não serve para muita coisa”.

Fumo pretende pedir a transferência e ir dar aulas num lugar onde possa continuar os estudos, mas sabe que tal pretensão dificilmente será atendida. Ainda assim não pensa em desistir. Quanto aos alunos, não tem grandes ambições. “Se pelo menos cinco aprenderem a ler terei cumprido a minha missão. Mas isso é uma meta muito ambiciosa”.

Olha para os lados e explica: “estamos a falar de crianças que foram criadas para apascentar gado e cujos pais não ligam o mínimo à educação. Ou seja, crianças criadas num contexto que desvaloriza completamente a escola. Por isso, ainda que algumas revelem uma capacidade cognitiva muito acima da média,as dinâmicas sociais constituem uma barreira para a sua afirmação como sujeitos”.

Questionado sobre as dificuldades que é viver num contexto sem informação e nas consequências que isso pode ter para um estudante que quer ser sociólogo, Fumo foi claro: “não há melhor espaço para estudar o social do que Chigubo. É certo que não tenho espaço de interacção com outras formas de analisar os fenómenos, mas poucos têm a matéria-prima de que eu disponho”.

“Não nego que é difícil, mas é algo ao qual nos acostumamos”. É certo, diz, que não temos acesso ao que se passa no mundo porque não temos corrente eléctrica, mas é “uma experiência enriquecedora dar aulas num local como este. Mas isso não quer dizer que eu quero morrer aqui. Preciso de sair e conhecer outros mundos”

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