No último domingo, Estreante, um dos dirigentes do Grupo de Teatro Makwero, aglomerou um conjunto de crianças (e alguns adultos) do/ no bairro da Mavalane, numa igreja, e, através da peça teatral “Kuphanda – Flores Que Nunca Murcham”, denunciou publicamente a deplorável situação em que se transforma a vida das crianças abandonadas (à sua sorte) pelos pais na rua.
Com 21 anos de idade, muitos dos quais dedicados às artes na sua diversidade – música, dança e, muito recentemente, malabarismo – Ernesto Langa, ou simplesmente Estreante, revela-se um jovem apaixonado pelo teatro.
Muito recentemente, no último domingo, levando o seu amor por esta expressão artística ao extremo, criou condições para que (depois de dois meses de um trabalho intenso com três actores jovens e totalmente novos no teatro) se exibisse no bairro de Mavalane, algures no subúrbio da cidade de Maputo, uma obra que, além de proporcionar um entretenimento sadio às crianças, contribuiu para que as mesmas reflectissem ou ganhassem à consciência da dura realidade que é enfrentada por pessoas da sua idade quando se tornam mendigos.
Danito, Tomás e Crescêncio, todos com 14 anos de idade, alunos da 8ª calasse, com um domínio de representação cénica e de imaginação invulgar, são os artistas que não somente provaram que a vida das crianças de rua é uma precariedade – elas não estão em paz e, naquela realidade, não podem tê-la – como também, em certo sentido, induziram os presentes (adultos e crianças, homens e mulheres) a evitarem situações que, no seio da família, propiciam um mal-estar nos petizes de que surge o abandono do lar para a rua.
Trata-se de três crianças que, tomando em conta o cenário de uma instabilidade constante no seio da família, acreditam que uma tal estória de mendicidade podia desenvencilhar-se de uma realidade em que “(…) a minha tia agredia-me bastante e, por vezes, sem nenhuma razão. Mandava-me fazer trabalhos duros e pesados. Violentava-me sexualmente, até que resolvi procurar um novo lugar para brincar”.
A idade desta personagem à beira de se tornar mendiga é tenra. Diante dela, na realidade em que se encontra, nada nos impede de pensar que na sua adolescência se arrependera da situação que, dentro em breve, iria experimentar. Basta que tenhamos em mente as dificuldades, a luta pela sobrevivência, por que passou no roldão da viagem que foi abandonar a província de Tete com destino à capital Maputo.
Entretanto, se o estimado leitor pensa que a mendicidade é apenas um problema das famílias pobres desengane- se. Caso contrário, esta narração de Estreante não faria sentido.
“Nasci na província de Tete, no centro do país, mas sou macua. A minha família era muito rica. Quando eu tinha cinco anos de idade, a minha mãe encontrou a morte. Por isso, o meu pai casou-se com uma outra mulher. Alguns anos depois ele morreu. Eu, absolutamente órfã, fiquei com a minha madrasta que depois se tornou esposa de outro homem. No entanto, o marido da minha madrasta tinha um mau hábito – abusava sexualmente de mim”.
Talvez o leitor acredite que – como se trata de uma obra de arte, uma imaginação criativa do artista – essa história é fictícia. Pode ser que tenha razão, mas, Lucrécia Paco, a nossa célebre actriz e encenadora moçambicana, já há bastante tempo que discute essa realidade na sua peça teatral “A Virgem”. Não há nenhuma intenção de fazer o leitor mudar a sua opinião caso não concorde, mas a verdade é que os artistas inspiram-se na realidade social que vivenciam, sendo por essa razão que as suas obras retornam à sociedade de onde se engendram.
De qualquer modo, deixemos as teorias à parte para perceber que o problema da menina violada recrudesce na medida em que “quando eu apresentava queixa – no lugar de se rebelar contra o marido – a madrasta ficava ofendida comigo afirmando que eu estava a seduzir o seu homem. Foi nesse contexto que eu e o meu irmão mais novo tivemos de fugir de Tete para Maputo. Viemos na boleia de um senhor, mas ao longo do percurso o meu irmão perdeu-se. Infelizmente, eu já nem tenho como voltar para a província de Tete”.
Talvez, diga-se, treinada pelo padrasto para, em certo sentido, tornar-se prostituta na cidade de Maputo, a adolescente não encontrou outra oportunidade diferente na pessoa de um cidadão que a burlou com falsas e malditas promessas.
Tanto é que a miúda, convencida de estar a participar no casting sexual para trabalhar no bordel, como meretriz – o que a sua mente ainda em processo de formação não conseguiu interpretar como violência – a menina é agredida e abusada sexualmente.
Alimentando falsas emoções, a rapariga explica ao namorado que ela não se deslocou de Tete para Maputo a fim de ser amada, mas porque precisava de dinheiro. Por essa razão, não iria abdicar do trabalho nocturno como prostituta por nenhuma razão.
Por causa do custo de vista, das circunstâncias que tornam o seu futuro uma incerteza, a criança (a suposta flor que nunca murcha) é confrontada com a dura decisão de ter de se tornar numa prostituta para adiar a sua morte que, por causa disso, ocorre de forma lenta e progressiva. Todos os seus sonhos de infância em relação a um futuro radiante tornam-se um tormento, causando-lhe um distúrbio mental.
Em cena, os pequenos artistas em idade cronológica e grandes pela sua produção artística, revelam uma série de tipologias de prostitutas. Algumas trabalham nos bordéis. Outras vendem o seu corpo de forma leviana nas ruas e, outras ainda, fazem o mesmo diante de professores e pessoas comuns que detêm algum poder material para satisfazer as necessidades que a família não supre.
De acordo com os actores, algumas destas crianças que se tornam mendigas, criminosos e prostitutas tentam estudar, mas, na escola, não compreendem a matéria em resultado da instabilidade que se verifica nas suas famílias. Por exemplo, há cônjuges que conflituam diante dos filhos, o que é mau, e quando se separam os infantes são obrigados a escolher – e arcar com todas as consequências que daí derivam – com qual dos progenitores pretendem viver.
Diante disso, deste tipo de agregados familiares que lhes desconfortam, além de chamá-lo inadequado para o seu desenvolvimento como pessoas, as crianças da peça Kuphanda (o mesmo que desenrascar a vida, o que na verdade fazem na rua) afirmam: “Queremos lares em que as crianças cresçam com carinho, amparo, amor, segurança familiar e apoio dos pais. Famílias em que as discussões dos pais não degeneram em pancadarias para os filhos”.
E não faltam argumentos: uma criança que abandonou um lar alicerçado em discussões, quando se refugia na rua torna-se um verdadeiro criminoso e assassino. É contra essa tendência que a sociedade, como um todo, deve lutar no sentido de reprimir.