O país celebra hoje, 4 de Outubro, a passagem dos 20 anos do Acordo Geral de Paz, que puseram fim a 16 anos de conflito armado entre o Governo moçambicano e a Renamo. O documento foi assinado a 4 de Outubro de 1992, em Roma, Itália, por Joaquim Chissano, antigo Presidente da República, e Afonso Dhlakama, líder da Renamo.
E o @Verdade, como tem sido habitual em datas comemorativas, saiu à rua e procurou saber dos cidadãos onde estavam no dia 4 de Outubro e o que acham da dos 20 anos da paz, a sua visão sobre o Moçambique actual. Eis os depoimentos…
Filimone Langa, 36 anos de idade
Este cidadão afirma que no dia em que foram assinados o Acordo Geral de Paz (AGP) estava em casa, pois ainda se registavam os vestígios da guerra civil que durou 16 anos. “Fiquei muito satisfeito quando naquele dia 4 de Outubro de 1992 soube que o partido no poder, a Frelimo, tinha assinado o cessar-fogo com a Renamo. Há muito que o povo ansiava pela paz, muitas vidas estavam a ser dizimadas”.
Mas para o Filimone, não basta que se tenha decretado o calar das armas com o advento da paz, ainda há uma série de factores que minam o desenvolvimento do país. “A fome, o desemprego, a extrema dependência económica do nosso país não nos transmite o real sentido da paz. Queremos o bem-estar económico e social, só assim a paz fará sentido”.
Flora Tonitui, 40 anos de idade
Na óptica da nossa entrevistada, residente no bairro da Machava-Sede, na Matola, há muitos ganhos trazidos pela paz em Moçambique. Se durante o tempo da guerra éramos obrigados a correr de um lado para o outro à procura de esconderijos, hoje isso faz parte da história. “Estou muito feliz pela paz, é graças a ela que hoje estou aqui a fazer os meus negócios. Se estivéssemos em guerra, não teria esta possibilidade”.
Segundo afirma Flora, no dia em que ouviu através da comunicação social que a Renamo e a Frelimo já tinham assinado o Acordo Geral de Paz, ela estava em casa porque naquela altura ainda havia grandes sequelas e focos da guerra que durou 16 anos.
António Macuácua, 47 anos de idade
Diferentemente doutros cidadãos, António, morador do bairro Nkobe, na cidade da Matola, afirma que na verdade a paz ainda não se faz sentir em Moçambique. Prevalece ainda uma série de fenómenos que preocupam o povo moçambicano. “A paz, essa, está no papel. Há muito que se fazer para que possamos dela desfrutar.
Enquanto formos reféns dos outros países, havendo fome, desemprego e pobreza absoluta, não podemos pensar que estamos em paz. O que existe é o calar das armas”.
António diz que no dia em que foram assinados o Acordo Geral de Paz, ele estava na África do Sul, para onde tinha ido à procura de melhores condições de vida. “Fiquei muito satisfeito ao ouvir que a Frelimo e a Renamo tinham chegado a esse consenso. Devido ao calar das armas, decidi regressar ao meu país. Mas ainda temos muito por fazer enquanto livres do conflito armado”.
Frederico Obodo, 40 anos de idade
Este cidadão reside na cidade de Maputo e dedica-se ao comércio informal. Segundo diz, os 20 anos de paz significam duas décadas de um sofrimento imparável. “Durante a guerra, dizia-se que só com a paz é que o sofrimento podia acabar, mas estamos há 20 anos em paz e as condições de vida de uma esmagadora maioria da população tendem a deteriorar-se”.
Para Obodo, a paz ainda não transmite o seu verdadeiro sentido. Apenas calaram-se as armas e só isso não basta para o bem-estar da população. “20 anos de paz, ainda temos crianças que não podem ir à escola por falta de condições. Ainda prevalece em centenas de milhares de moçambicanos a pobreza absoluta. Para mim, a paz existe teoricamente, na prática ela não passa de uma miragem. Os pobres continuam mais pobres e os ricos ficam ainda mais ricos. Há grandes desigualdades de vida e injustiças neste país”.
“O desemprego rouba-nos a paz”, Dionildo Tamele, 25 anos de idade
“Penso que as pessoas pensam que estão em paz quando vivem num ambiente em que não há conflitos armados, mas a paz ainda pode ser entendida como o exercício de todas as liberdades humanas, incluindo a de expressão, sem nenhum tipo de intimidação. Recordo-me de que ainda criança, os meus pais diziam-me que viveram num ambiente de guerra que durou 16 anos – razão pela qual, na época, passavam por uma série de limitações no exercício da sua liberdade.
Passavam a vida à deriva, sem saber o que fazer. Vinte anos depois do fim de guerra, sinto que ainda temos uma série de dificuldades para falar da paz porque, na minha compreensão, esta dimensão envolve muitos elementos – não só o calar das armas”, considera Dionildo Tamele.
E acrescenta que no país “as pessoas que têm vontade de expressar as suas ideias e pensamentos – de forma livre e original – não encontram espaço para o efeito, por causa das sevícias de que podem ser vítimas. Eu, por exemplo, como jovem ainda não me sinto feliz porque sinto que há muitas pessoas que – como eu – possuem uma formação concluída, no entanto, não têm emprego. Isso também tem roubado a paz à camada juvenil no país”.
“A paz não está a ser (muito bem) preservada” – Vitorino Mucove, 52 anos de idade
Na opinião do nosso interlocutor, a guerra é um instrumento que ceifa vidas humanas para além de provocar outros danos. Por essa razão, ficou muito feliz quando, finalmente, a 4 de Outubro, a Frelimo e a Renamo entenderam que era chegada a altura de acabar com o sofrimento do povo moçambicano. “Recordo-me de que na época da guerra, muitas pessoas tiveram de se aglomerar na cidade de tal sorte que não se podia trabalhar nas machambas, o que, com o advento da paz, se modificou totalmente”.
“Eu sou da província de Inhambane, distrito de Govuro. Certa vez, parti de Maputo de navio com destino à minha terra natal. Naquele contexto, quando estávamos quase a chegar a Mambone, os bandidos armados incendiaram o navio, através de bombardeamentos. Graças a Deus não perdi a vida. Tive sorte, mas foi uma experiência assustadora. Pelo menos duas pessoas pereceram no local. Foi muito triste testemunhar aquele episódio”, conta.
“Actualmente, sinto que as pessoas podem estar enganadas ao pensar que estão em paz porque o que aconteceu é que, durante a guerra, era dolorido perder parentes de forma brutal. Se houve conflito no passado foi porque algo carecia de correcção entre os governantes do país, mas, a referida rectificação tem-nos trazido muito pouco além do calar das armas.
As pessoas continuam a sofrer, mas de um modo diferente. O sofrimento por que muitas pessoas passam no país desvaloriza muito a paz que temos: as pessoas que estão a trabalhar recebem uma miséria, vivem mal, e, tantas outras não têm emprego.
Não quero que haja conflitos armados, mas sinto que a guerra continua porque não há liberdade. Eu gostaria muito que os moçambicanos, muito em particular os jovens, ficassem cada vez mais despertos, de modo que possam resolver os problemas que atravessam para que encontrem a paz”, termina.
“Ninguém pode estar em paz se tiver de apertar o cinto constantemente”, Ricardo Moiane, 35 anos de idade
“Como desde sempre vivi no centro da cidade, não tive nenhuma experiência em relação à guerra. Mas como os meus avôs são de Marracuene, quando lá estive depois do conflito pude ver as suas consequências. Penso que, para o cidadão comum, o balanço dos 20 anos de paz é positivo num aspecto: ele já pode circular no país sem problemas. Mas, infelizmente, a pobreza é um marco indelével que choca bastante a quem não somente experimenta como também aos que a assistem”
“Eu ganhei a verdadeira noção do nível da pobreza nos últimos dois anos porque passei a viver no bairro de Maxaquene. No centro da cidade não se percebe nada. Há muita gente excluída no subúrbio e, por essa razão, há um descontentamento geral da parte da população, não obstante os discursos políticos insistirem que país está a registar avanços económicos. O problema é que isso não satisfaz as necessidades do moçambicano. É preciso que o desenvolvimento se reflicta na vida do povo, o que não se está a verificar”.
“Em relação ao ritmo em que o país está a correr, eu estou muito pessimista de tal sorte que receio que seja provável que voltemos à situação de conflito, ainda que não seja nas mesmas proporções do que aconteceu logo depois da independência.
Como temos visto, a exemplo do que tem acontecido nos outros países, os moçambicanos estão a aprender a confrontar o Governo, primeiro, sempre pela via do diálogo. A paz não existe entre os moçambicanos, porque a falta de bem-estar continua a complicar a vida de muitos. O povo está constantemente a apertar o cinto e, quando é assim, ninguém fica em paz”.
Luís Geraldo Pastola, 42 anos de idade, Nampula
“No dia em que foram assinados os Acordos Gerais de Paz eu estava no Centro de Formação de Professores de Morrupula, que acabava de ser transferido para Marrere, arredores da cidade de Nampula, devido à guerra. Como estudantes, estávamos numa palestra cujo tema era acerca da assinatura dos acordos, em Roma”, lembra Luís Pastola, e acrescenta que nenhum dos presentes acreditava que um dia seria alcançado o cessar-fogo.
“Quando ouvimos dizer que seria assinado o Acordo Geral de Paz no dia 4 de Outubro, pensámos que se tratasse de um boato, ‘espalhado’ por alguém que queria que voltássemos ao Centro de Formação de Professores de Murrupula. Não acreditávamos pois o processo de negociação teve muitos impasses. Mas fiquei alegre quando soube que o sonho dos moçambicanos ia tornar-se realidade”.
Paulo António Primala, 48 anos de idade, Nampula
“No dia da assinatura do Acordo Geral de Paz eu estava em casa, com o rádio ligado. Estava ansioso. Eu trabalhava na Escola Primária de Muaciua, a 50 quilómetros da cidade de Nampula e era muito arriscado ir para lá. Corria perigo”.
“A partir daquele dia, senti-me livre e em paz, mas com certo receio porque a assinatura tinha sido adiada por muitas vezes. Havia cláusulas das quais as duas partes não queriam prescindir. Mas graças à comunidade de Sant’Egídio foi possível levar a paz ao lar dos moçambicanos”.
“A outra questão da qual duvidávamos e não nos deixava seguros era a introdução do multipartidarismo no país. O líder da Renamo fazia ameaças, aliás, continua a fazer, e os que reclamavam na guerra reclamavam melhores condições de vida. Mas apesar disso, a paz veio para ficar e é a responsável pelo nível de desenvolvimento que o país está a registar”.
Absalão Siweia, Nampula
“Eu estava na empresa Texmoque, em Nampula, e havia um rádio no meu gabinete que me permitia ter toda a informação de tudo o que acontecia à volta do Acordo Geral de Paz. Quando soube que, finalmente, o Governo e a Renamo tinham chegado a um consenso, fiquei feliz. Era tudo o que eu e a sociedade queríamos. Vários familiares meus sofreram na pele os efeitos daquela guerra. Se a guerra não tivesse acabado, o país estaria mergulhado num caos”.