A vela e a canoagem em Moçambique não são modalidades desportivas tão recentes como pode parecer. Antes pelo contrário, surgiram há décadas na antiga cidade de Lourenço Marques, actual Maputo. À memória surge como marco o Campeonato Mundial de Vela do longínquo ano de 1973 que teve lugar neste ponto do país. Volvidos 36 anos e na contingência da recepção dos décimos Jogos Africanos de Maputo, o país estabeleceu a primeira entidade que tutela estas duas modalidades desportivas: a Federação Moçambicana de Vela e Canoagem (FMVC). Hoje, trazemos em entrevista Décio Muianga, o vice- -presidente desta agremiação e o primeiro desde a sua implantação no país.
Ciente de que as referidas modalidades são distintas, embora praticadas de igual maneira, o jornal @Verdade decidiu por uma questão de metodologia, englobar estas duas disciplinas náuticas numa só modalidade, como o próprio nome da federação sugere.
@Verdade – Qual é o Estado da vela e da canoagem em Moçambique?
Décio Muianga – Não diria bom. As duas modalidades atravessam muitos problemas, como é natural.
@V – Quais?
DM – De vária ordem. Desde os de formação até aos de realização e participação em campeonatos. Mas todos eles resumem-se num só: falta de apoio financeiro.
@V – Quais são os pontos do país onde são movimentadas essas duas modalidades?
DM – Neste momento em apenas três locais, nomeadamente cidade de Maputo, onde temos dois clubes (o Marítimo e o Naval), em Chidenguele, o Clube de Desportos e na Beira, o Centro Náutico.
@V – E a federação goza de boa saúde?
DM – Como instituição, felizmente, somos coesos e unidos. Contudo, não podemos deixar de reclamar alguma consideração pelos resultados que temos vindo a registar desde que nos estabelecemos. Somos pequenos mas muito bem-sucedidos no que diz respeito a resultados desportivos.
@V – Fala muito do aspecto financeiro. Não acha que isso pode ser o reflexo da condição do país?
DM – Como? Onde estão as prioridades desportivas? Como é que a Federação Moçambicana de Basquetebol, com os muitos problemas que tem, recebe um orçamento cinco vezes maior do que o nosso e sob o ponto de vista de resultados estar distante de nos alcançar?
@V – Mas quanto é que recebem do Fundo de Promoção Desportiva (FPD)?
DM – Um milhão de meticais.
@V – Esse valor, tendo em conta que a modalidade está implantada em apenas três pontos do país, não é razoável?
DM – E para estendermos, como devemos fazer? Penso que não podemos ir por aí. É necessário analisar, primeiro, sob o ponto de vista de resultados, e, segundo, no que toca aos objectivos que nós traçámos para engrandecer a vela e a canoagem. Repare que agora estamos a recomeçar com a vela na Beira e temos no horizonte o surgimento de mais um clube em Maputo. Ora, tudo isto precisa de investimento, o que, infelizmente, não temos.
@V – O que é feito do valor que recebem?
DM – Não muita coisa. Organizamos campeonatos nacionais de Janeiro a Dezembro e organizamos cursos de formação de treinadores. Mas devo dizer que é dentro das nossas capacidades o que não é o desejável. E mais, com este valor, a federação compra mais velas e participa em campeonatos internacionais, como foi na Tanzânia, onde inclusive saímos medalhados.
@V – E o que é que não pode ser feito?
DM – Só neste ano, concretamente em Junho, não nos foi possível participar no Campeonato de Canoagem da Zona VI. E não só, Moçambique seria o país anfitrião mas por falta de dinheiro acabámos por passar a organização para a vizinha África do Sul.
@V – Não contam com o apoio do sector privado?
DM – Infelizmente, não. Uns e outros, de forma isolada, prestam-nos apoio, mas temos que ser capazes de afirmar que esta modalidade não conta com o apoio do sector privado. Tudo o que fazemos é graças ao nosso esforço e digo mais: por vezes tirámos do nosso próprio bolso para arcar com algumas despesas.
@V – No meio dessas dificuldades, quais são os principais desafios da federação neste momento?
DM – Levar a vela e a coagem, até ao fim deste ano, a mais pontos do país, sobretudo às regiões Centro e Sul, onde as pessoas já demonstraram vontade de praticar a modalidade. Falo, por exemplo, de Tete e ao longo do rio Zambeze.
@V – E porque é que não podem estender as modalidades ao resto do país, e não só às zonas Centro e Norte?
DM – Tem que haver vontade por parte dessas províncias e do nosso lado, tem de haver recursos suficientes para implantar estas modalidades.
@V – Com isso pretende dizer que não se pratica este desporto em Moçambique por falta de interesse?
DM – As pessoas têm interesse, mas o que falta na verdade é o estímulo. As pessoas olham para este desporto como se devesse ser praticado por pessoas ricas. É por isso que nem sequer se aproximam, quanto mais nas outras províncias.
@V – E que trabalho tem sido feito pela federação para inverter esse quadro?
DM – Esta já é uma outra abordagem. Porém, posso afirmar que estamos a trabalhar com vista a mudar o cenário, sobretudo na massificação. Queremos fazer entender às pessoas que qualquer um pode pegar numa embarcação à vela e competir. Estamos neste momento a trabalhar com os clubes para que nos seus processos de recrutamento trabalhem mais com as escolas, principalmente com as públicas.
@V – Há quem também diga que a vela e a canoagem são modalidades para estrangeiros. Que comentário tem a fazer?
DM – Não é verdade. Noventa e nove porcento dos nossos praticantes são mo çambicanos. Ademais, o trabalho de base que temos vindo a fazer ao longo destes três anos de existência tem incidido sobre crianças moçambicanas. Portanto, é falsa essa ideia.
Formação
@V – A quantas anda a formação?
DM – Não estamos no nível desejado, apesar de sermos regulares nesse aspecto. Mas também é preciso entender que no que respeita à formação de atletas, a responsabilidade é dos próprios clubes. Nós fazemos a monitoria e formamos treinadores. No ano passado instruímos o nível três da Federação Internacional de Vela a técnicos nacionais. Neste ano, demos o nível 1 nas cidades de Maputo e da Beira. Para o ano, pretendemos levar a acabo várias actividades de formação para a canoagem.
@V – Os cursos de nível internacional contam com o apoio de entidades e organismos também internacionais?
DM – Quando se trata de formação, o apoio não nos falta. Temos parcerias com a Federação Sul-Africana de Vela, do Comité Olímpico Internacional, para além das próprias federações internacionais, quer de vela quer de canoagem.
@V – Quantos novos atletas já foram formados desde a implantação da federação no país?
DM – Cerca de 800.
@V – E onde é que eles estão?
DM – Nem todos são aproveitáveis e nós temos de encontrar, dentre eles, os melhores, até porque não teríamos embarcações suficientes para todos. Há que referir que muitos desistem.
@V – No caso das desistências, qual é a solução?
DM – Nós aconselhamos as pessoas a manterem-se na vela e na canoagem. Mas também incentivamos àqueles que têm condições de adquirir embarcações para o fazerem de modo a ajudarem os que não as têm. É uma espécie de coabitação positiva. Infra-Estruturas
@V – Em termos de infra-estruturas desportivas para a vela e canoagem, o país está num bom caminho?
DM – Estamos bem, com excepção do que acontece em Chidenguele.
@V – O que o leva a dizer que estamos bem?
DM – Revitalizámos as infra- -estruturas dos pontos onde a Vela e a Canoagem existem. Com a realização dos Jogos Africanos, o Governo melhorou a condição das nossas infra- estruturas em dois locais, nomeadamente Chidenguele e Maputo. Mas é preciso dizer também que os clubes, porque são autónomos, têm as suas infra-estruturas em dia. Portanto, neste ponto não temos razões de queixa.
@V – E o que se passa em Chidenguele?
DM – Temos uma obra herdada dos Jogos Africanos muito mal concebida. Está agora com problemas estruturais gravíssimos. Nem parece que foi edificado há pouco tempo, e cá temos o Comité Organizador dos Jogos Africanos (COJA) a fugir das responsabilidades de resolver o problema que se coloca.
@V – Voltando à questão das competições internas, quantas são realizadas ao longo do ano e qual é o critério usado para o apuramento dos vencedores?
DM – Ao longo do ano organizamos 12 regatas, uma por mês. As especialidades são vastas, desde os laser aos 420. No fim de cada ano, apuramos os vencedores gerais, que são aqueles que ao longo do ano foram somando triunfos.
@V – E as internacionais?
DM – Se faltámos, foi por falta de fundos. Mas sempre vamos e é por mérito próprio, nunca por convites. Nós, como país, temos um nome a nível internacional e sempre vamos competir para medir o nosso nível competitivo. Agora, o nosso objectivo é chegar ao Rio de Janeiro em 2016.
@V – Sente que chegaremos aos Jogos Olímpicos de 2016?
DM – No nível em que estamos, é inevitável. Veja que agora trabalhamos mais com jovens com idades compreendidas entre os 16 e 18 anos. São os mesmos que têm saído para conquistar medalhas para o país.
@V – Conquistámos medalhas nos Jogos Africanos e na Tanzânia. Qual é o segredo do sucesso do país em competições internacionais?
DM – Muito trabalho. Somos muito regulares nas competições. Os nossos atletas treinam quatro vezes por semana e nunca dispensam os fins-de-semana. Não há descanso e é esta a filosofia que implantámos para alcançar o sucesso.
Falta de Patrocínio
@V – Porque é que a vela e a canoagem em Moçambique reclamam de falta de patrocínio?
DM – Por preconceito e falta de cultura de patrocinar o desporto por parte das empresas. Vivemos um mecenato doentio. Mas se os resultados são as condicionantes, então que fiquem descansados porque nós estamos a trabalhar para elevar o nome do país além-fronteiras e penso que já demos os primeiros passos. Jogos Olímpicos
@V – Em Londres esteve o Sigaúque (Judo), Máquina (Boxe) e mais outros… Por onde andou a Maria Mabjaia, a menina de 13 anos de idade, e que é considerada a estrela de vela do país?
DM – Não só a Maria, mas a modalidade de vela e canoagem no geral. Nós não participámos nos Jogos Olímpicos por falta de condições para ombrear com os outros países. Porém, como disse, estamos a caminho e 2016 será o nosso ano.
@V – O que terá falhado ou que está a falhar?
DM – Faltam-nos recursos humanos, dentre eles treinadores e gestores desportivos. Temos falta de recursos financeiros, assim como de meios modernos, tais como embarcações.
Encontro com o Presidente
@V – O que achou do encontro do Presidente da República com a classe desportiva?
DM – Importa referir que eu não estava cá. Mas foi boa a iniciativa, embora ache que não devia ter sido só naquele dia.
@V – Porquê?
DM – Para a organização e participação nos Décimos Jogos Africanos que decorreram no ano passado em Maputo, só para citar um exemplo prático, mantínhamos encontros semanais com os que tutelam o nosso desporto. Terminaram os jogos, fomos esquecidos como se já não se praticasse a modalidade no país. Se as pessoas querem saber porque é que o nosso desporto está como está, sabem onde nos encontrar.
@V – Então, sente que há um distanciamento entre as federações e as entidades que tutelam o desporto no país?
DM – Absolutamente. O nível de envolvimento do ministro da Juventude e Desporto não vai ao encontro da realidade desportiva do país. Para ser sincero, ele está muito distante.
@V – Considera que foi “mais um encontro”?
DM – Não é naquele tipo de reuniões onde as pessoas falam por apenas um minuto que se vai sair desta precariedade em que nos encontramos em matéria de desporto. Como disse, o Presidente da República, se quiser resolver o problema das federações, que faça “presidências abertas” a essas entidades.
@V – E o que deve ser feito para ultrapassar estes problemas?
DM – Têm de estruturar o Ministério da Juventude e Desportos, temos de ter visão sobre o que queremos e traçarmos políticas claras. Devemos, ainda, ter pessoas certas nos lugares certos, ou seja, os dirigentes têm de ter uma noção do que é desporto. Se isso não for feito, continuaremos a competir só para ganhar experiência.
@V – E na vela e na canoagem, concretamente?
DM – Nestas modalidades, independentemente das condições, não vamos singrar.
@V – Sabe-se que a FMVC ainda tem (muitas) dívidas por liquidar e que as mesmas se referem à organização dos Jogos Olímpicos. Como se explica?
DM – Inúmeras. Primeiro não tivemos o apoio devido para a organização das competições de canoagem. Segundo, nós não tínhamos barcos e tivemos de os pedir a título de empréstimo à África do Sul, cabendo a nós pagar o transporte. O alojamento e o transporte do pessoal dos jogos estavam também sob nossa responsabilidade. O COJA prometeu liquidar a dívida, mas até hoje nada foi feito e quem sofre com isso é a federação.
@V – Qual é o montante?
DM – Cerca de 30 mil dólares.