Se hoje em dia a tracção total permanente é uma solução banal utilizada por diversos construtores, ela só se vulgarizou durante a II Guerra Mundial com os Jeep Willys, apesar de tudo ter começado há mais de 100 anos com um tal Spyker.
Hoje, a tracção total é uma solução técnica que muitos construtores de automóveis adoptaram para conseguirem colocar no chão toda a potência de veículos desportivos, ou para maximizar a segurança em pisos de aderência difícil. Apesar de ser uma solução tecnológica que é cada vez mais comum, ainda continua a ser algo desconhecida e conotada com os jipes, o que nem se pode estranhar porque a memória é curta e os Willys – que o exército americano trouxe para a Europa durante a II Guerra Mundial – criaram raízes que vieram a dar origem a marcas como a Land Rover, ainda hoje a grande especialista europeia a este nível. Contudo, há 25 anos, a Audi resolveu desenvolver a tracção integral para os automóveis do dia-a-dia, reinventando esta tecnologia. No início, o objectivo passava por melhorar a aderência em pisos difíceis, especialmente nas estradas cobertas de neve e gelo, algo que desde sempre foi uma dificuldade com que se debateram os automobilistas do Centro e Norte da Europa. A história da tecnologia que a Audi veio a baptizar de “quattro”, começou com um protótipo construído em 1977 com base num Audi 80. Este modelo serviu para testar o sistema que, após ter sido validado pelos técnicos, permitiu a construção do primeiro Audi quattro que foi apresentado em 1980 no Salão de Genebra. Apesar de a ideia inicial visar um aumento da segurança na condução do dia-a-dia, ela rapidamente mostrou que permitia colocar no chão mais potência de motores mais musculados, sem as perdas que até aqui eram condicionantes, quer para os automóveis de tracção dianteira, quer nos de tracção traseira.
Por isso, a Audi apostou no desenvolvimento do seu quattro, tornando-o o carro de ralis. Esta aposta veio não só a ser ganhadora como revolucionária no quadro do Campeonato do Mundo. Michèle Mouton, Hannu Mikkola, Stig Blomqvist e Walter Rohrl foram os pilotos dos Audi quattro que dominaram os grandes ralis no início dos anos ´80. Em 1982, a Audi ganhou sete das 11 provas do calendário, vencendo o campeonato de marcas onde a francesa garantiu o segundo lugar na classificação de pilotos. No ano seguinte, Hannu Mikkola sagrou-se campeão do mundo de ralis com quatro triunfos e a marca alemã terminou a temporada no segundo lugar do campeonato de construtores. Em 1995, a Audi e Stig Blomqvist fizeram o pleno, garantindo a vitória, quer ao nível de pilotos, quer na classificação de construtores. A solução quattro parecia ser o “ovo de Colombo”, a receita para chegar ao sucesso, e outros construtores seguiram o mesmo caminho, o que obrigou a Audi a reagir. Por isso, em 1986 surgiu o Audi Sport quattro com uns impressionantes 450 cv de potência, algo perfeitamente aberrante. Poucos anos antes, os Fórmula 1 que rodavam na “segurança” de circuitos fechados, pouco mais potência tinham, o que contrastava com o que se passava nos ralis onde os concorrentes corriam em estradas sinuosas, no meio de árvores ou ladeados por multidões.
O potencial tecnológico havia ultrapassado a segurança e o inevitável aconteceu em Portugal quando o despiste do Ford do português Joaquim Santos entrou pela multidão, causando destruição e morte. Este acidente obrigou os responsáveis a repensarem a regulamentação e, para limitar o andamento dos veículos, foram adoptadas restrições que afastaram os Audi quattro do Campeonato do Mundo. Os quattro ficaram de fora mas a tecnologia quattro perdurou nos menos potentes Lancia Delta 4WD, que durante muitos anos fizeram com que a tracção integral continuasse a ganhar ralis, o que aconteceu até nova limitação reduzir os automóveis admitidos a duas rodas motrizes, uma decisão novamente ditada pela necessidade de limitar as performances.
Invenção com mais de 100 anos
A tracção integral é uma solução de provecta idade, apesar de ter estado mais ou menos esquecida durante anos, até ser recriada nos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial, dando origem aos Jeep Willys que garantiram a mobilidade à infantaria, ajudando os aliados a chegar à vitória. Depois, foi utilizada em veículos militares, na agricultura e para os mais diversos fins, antes de passar a ser vista como a solução ideal para os SUV, veículos destinados ao lazer dos dias de hoje, mas também um importante contributo para a segurança de automóveis familiares e desportivos. Contudo, todos esqueceram o primeiro veículo de tracção total, o Spyker 60/80 hp apresentado em 1903 pelos irmãos Jacobus e Hendrik-Jan Spyker. Estes dois carroçadores de Amesterdão lançaram o seu primeiro automóvel em 1898 com base numa mecânica Benz. Cinco anos depois, impressionaram pela inovação do 60/80 hp, o primeiro automóvel de tracção total permanente, mas também o primeiro a utilizar um motor de seis cilindros e travões independentes às quatro rodas.
Solução generalizada
Por isso, a tracção integral é hoje uma recordação ao nível dos automóveis de competição. Contudo, a sua solução generalizou-se, quer ao nível dos super-desportivos, quer nos automóveis do dia-a-dia. Assim, paralelamente aos jipes cuja oferta se tem vindo a vulgarizar nos últimos anos, com o aparecimento de novas propostas 4×4 em muitos construtores que ainda há poucos anos não os incluíam nos seus catálogos, encontramos superdesportivos onde a sua grande potência é controlada pelas quatro rodas motrizes, como acontece com o Lamborghini Murciélago, para já não falar nos Porsche e vários outros.
Ao mesmo tempo, vários tipos de soluções mecânicas ou electrónicas permitem potenciar a aderência de automóveis bem mais comuns. É o caso de monovolumes como os VW Sharan, de berlinas como o Volvo S40 e até comerciais como o Renault Kangoo, para citar apenas alguns exemplos.