“Porque é que hoje é muito fácil um país ser democrático? Porque é que hoje somos todos democratas”? Foi com estas interrogações provocadoras que Boaventura de Sousa Santos iniciou a sua palestra no auditório da Rádio Moçambique, naquela tarde de quarta-feira, 11 de Julho. Uma quarta-feira “iluminada”, diga-se de passagem, pois o maior sociólogo português tinha no mesmo dia, mas no período da manhã, ministrado uma aula magistral na Escola de Comunicação e Artes da UEM.
As respostas às suas perguntas consubstanciaram a aula de quase uma hora atentamente acompanhada por intelectuais, professores universitários, jornalistas, estudantes universitários e outros cidadãos anónimos que se interessaram pelo sugestivo tema de “democratizar a democracia”.
Segundo o sociólogo, o actual contexto em que se produz e se reproduz a democracia é muito diferente do contexto de há 10 anos. Hoje, explica, a democracia tornou-se no único sistema legítimo e legitimado por pessoas e instituições que antes lutavam contra ela.
O actual contexto apagou a velha tensão entre a democracia e o capitalismo, justamente porque as instituições financeiras internacionais que propagam o capitalismo, nomeadamente o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial, são hoje as reguladoras da democracia. “O capitalismo floresce onde há democracia”, declarou o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra.
Sendo a democracia um condicionalismo para o capitalismo, o seu florescimento acabou com as políticas sociais do Estado, reduzindo a intervenção deste aos serviços mínimos. Tudo está privatizado e a regulação da economia ficou confiada ao mercado, este por sua vez dominado pelo grande capital internacional. Em nome de atracção de mais investimentos privados, o Estado deixou de tributar as empresas, incluindo as multinacionais.
Resultado: não tem dinheiro e vai pedir empréstimos, o que lhe faz perder a soberania no plano internacional. É que os empréstimos, quer a título concessional, quer a título comercial, acarretam sempre condicionalismos. “Um Estado quando tributa as empresas é soberano, pois tudo ocorre a nível interno”, considerou o sociólogo.
Viragem
Há bem pouco tempo, a grande discussão entre os cientistas sociais era sobre as condições de possibilidade de uma democracia. Agora, diz ele, o debate virou e a democracia é a condição de tudo o resto. “É muito suspeito que a democracia venha hoje ser defendida por quem não só nunca a defendeu mas também defendeu ditaduras”.
Com a democracia ligada ao capitalismo neoliberal, os países vivem e convivem com duas constituições, nomeadamente a nacional, do país, e a grande constituição das multinacionais e das instituições financeiras, o constitucionalismo global, para usar as palavras de Boaventura de Sousa Santos.
Outra consequência apontada por ele é a grande dispersão do poder político. “Agências nacionais e sobretudo internacionais têm um grande poder de decisão, mas não foram eleitas”.
A falta de transparência, o fraco regime de regulação das empresas multinacionais, o neopatrimonialismo e a corrupção são outras consequências da democracia representativa, um modelo onde os cidadãos não decidem sobre o seu próprio devir, mas delegam alguém a decidir por eles.
Trata-se de problemas sendo que alguns deles decorrem do facto de os mercados políticos, dominados por convicções, e económico, dominado por valores que se vendem e se compram, terem-se fundido.
Essa fusão faz com que em política tudo se compra e tudo se venda. “Enquanto os dois mercados estiverem fundidos, não há forma de a democracia ser uma anomalia, não há forma de a corrupção ser combatida”.
Dupla legitimidade
A coexistência de várias legitimidades políticas é apontada pelo orador como um grande risco para a democracia em África. Muitos países africanos têm partidos que convivem com duas legitimidades, nomeadamente a revolucionária e a democrática. “O ANC, por exemplo, tem duas legitimidades, a revolucionária (foi ele quem lutou contra o Apartheid) e a democrática. Quando uma enfraquece recorre à outra”, explicou.
Democracia de baixa intensidade
Boaventura de Sousa Santos chama democracia de baixa intensidade àquela que não reconhece outras formas de participação. Ou seja, ela bloqueia a cidadania através da exclusão política e social, das imposições internacionais e da trivialização da participação. “Os cidadãos são chamados a decidir em coisas cada vez menos importantes”, ilustrou.
Esta democracia de baixa intensidade não reconhece também as outras legitimidades, sobretudo as tradicionais. Se na Europa as autoridades tradicionais estão no topo, os Reis e as Rainhas, em África as autoridades tradicionais estão em baixo, os Régulos.
“Muitas vezes as formas comunitárias de resolução de conflitos são marginalizadas em África, desperdiçando-se uma valiosa experiência de justiça”. Para ele, o que pode parecer à luz da democracia representativa uma “fraude”, é uma forma interessante de democracia comunitária.
“Democratizar a democracia é não limitá-la ao voto, mas encontrar outras formas de democracia, de participação”, apelou. O orador recordou que a democracia representativa não é falsa, mas ela é residual, porque monocultural.
“Quando não temos um reconhecimento intercultural, temos uma democracia de baixa intensidade. E só podemos lutar por uma democracia de alta intensidade se reconhecermos que temos uma democracia de baixa intensidade”.
Ainda sobre a democracia, o sociólogo questionou por que razão partidos políticos que lutam por ela não são eles mesmos democráticos a nível interno, porque é muitas ONG que lutam pela democracia não são elas mesmas democráticas? “Alguns têm dirigentes que nunca foram eleitos”.
Media
Quanto aos media e a esfera pública, outro tópico da sua intervenção, o sociólogo português indicou que em África não existe uma esfera pública. Existe a esfera pública cívica, a esfera racionalizada dos assimilados, de poucas pessoas, e a esfera pública étnico-cultural, a esfera comunitária.
Reconhecendo o seu papel fundamental durante as lutas de libertação do continente, o orador questionou se hoje os meios de comunicação são ou não parte do problema ou solução.
Sem dar uma resposta clara, reconheceu ainda que os media foram fundamentais para manter a tensão, a autorização (através do voto) e a prestação de contas (por parte dos políticos), foram fundamentais também para manter separado o mercado político (das convicções) e o mercado económico (dos valores). Mas com as privatizações, alertou, os media passam a seguir a agenda dos proprietários.
“Os media têm de ser plurais e têm de ampliar simbolicamente a diversidade dos países”, disse, sublinhando a necessidade da África reforçar os seus media, pois os media internacionais só reforçam todos os estereótipos que o colonialismo produziu e o capitalismo neoliberal reproduz sobre África.
Já no fim da sua intervenção, Boaventura de Sousa Santos chamou a atenção dos moçambicanos para a possibilidade de a “orgia dos recursos naturais” causar no país o que se está a passar em Angola, “onde a riqueza está nas mãos do Presidente (José Eduardo dos Santos) e da filha (Isabel dos Santos).