Maria Muchanga, de 71 anos de idade, mãe de quatro filhos, sentiu na noite do dia 23 de Março a dor do desamparo. Os filhos que, supostamente, deviam protegê-la, abandonaram-na. Na sequência disso, passou duas noites ao relento, sem água e muito menos algo para comer.
A história de Maria parece estar para lá do comum no modus vivendidos moçambicanos. Ela conta na primeira pessoa como a desgraça irrompeu pela sua vida:
“Chamaram o meu neto para a casa do meu filho, onde estava hospedada há algum tempo, sob a alegação de que ele me levaria ao hospital. Mas não foi o que aconteceu. O jovem veio deixar-me aqui na rua, prometendo que voltaria com muita urgência para me buscar. Mas ele não voltou”.
Maria, que desde a infância foi apaixonada pela agricultura, até há alguns anos vivia no distrito de Bilene, província de Gaza. Entretanto, recebeu um convite (irrecusável) do filho, residente em Maputo, para que viesse praticar a actividade agrícola num dos terrenos de sua pertença, no distrito da Manhiça, norte da província de Maputo.
Por considerar que se tratava de um “bom convite”, Maria não pensou duas vezes e concordou em ir a Manhiça. “Aceitei na hora, por amor ao meu filho e também porque isso diminuiria a distância física entre nós. Foi por essa via que vim a esta cidade, deixando para trás a minha machamba. Tudo isto por amor ao meus filhos.”
De Bilene, ela veio para a cidade de Maputo, concretamente para o bairro Magoanine A, na casa do filho, de nome Xavier, de quem ela fala(va) bem. Passados alguns dias, foi levada para o distrito da Manhiça, conforme o combinado. Foi lá onde passou boa parte do seu tempo, trabalhando a terra.
O anúncio do abandono
Tempos depois, a viver na solidão, algures na Manhiça, Maria começou a queixar-se de dores em todo o corpo. Tentou, segundo afirma, fazer o tratamento num hospital local, mas debalde. “Quando me desloquei a um hospital próximo do local onde eu trabalhava para fazer consultas e análises, não acusava nada. Diziam-me, os médicos, que eu estava bem”, conta.
Desesperada, Maria tentou entrar em contacto com o filho, residente na cidade de Maputo, o que só veio a conseguir mais tarde graças a um vizinho que fazia viagens regulares para a capital. “Foi ele quem contactou o meu filho”.
Xavier levou muito tempo até ir ao encontro da mãe, cujo estado de saúde já se tinha degradado. “Esse comportamento deixou-me decepcionada. Não esperava que ele tomasse aquela atitude. Mesmo sabendo que eu, a progenitora, a pessoa que lhe trouxe ao mundo, estava doente, ele levou dias para ir buscar-me”.
Porque os desígnios do destino não são incontornáveis, ainda que o filho tivesse ido ao seu encontro, isso não era o fim do calvário pois ela teve muitos (e surpreendentes) episódios (diga-se, tristes). Apesar disso, diz não ter coragem de guardar mágoas do filho, e firma que “a única coisa que me entristeceu foi a demora, sabendo ele que eu estava doente”
A culpa de ser da terceira idade
Entretanto, tendo chegado à casa do filho, no bairro Magoanine “A”, a esperança de receber um tratamento hospitalar melhor não passou de uma miragem. Não recebia cuidados que uma pessoa doente e com a idade avançada merece.
A preocupação era saber quando é que o filho lhe levaria para o hospital, o que só veio a acontecer no dia 23 de Março. “Fiquei muito feliz quando soube que seria levada a uma unidade sanitária”.
Para tal, foi solicitado um jovem, que foi apresentado como sendo seu neto para encaminhá-la ao hospital. A intenção foi boa, porém o procedimento não reflectia o combinado. Ela foi levada para uma rua e, posteriormente, para uma zona por ela desconhecida.
“Passámos o Hospital Geral José Macamo a alta velocidade, daí que comecei a ficar preocupada, mas porque se tratava do meu neto, não pensei em muita coisa” conta. Ela chegou a pensar que estava a ser levada de volta para o distrito da Manhiça, onde praticava a actividade agrícola.
Para o seu espanto, o suposto neto entrou pela avenida Nelson Mandela, a que vai dar ao bairro Matendene. Lá, o jovem parou numa rua, ordenou que a idosa descesse do carro e prometeu que voltaria para buscá- -la. Foi o último contacto entre ambos.
Quatro noites ao relento
Como que a confiar no jovem, ela permaneceu no mesmo lugar até a calada da noite à espera que ele voltasse para buscá-la, mas foi em vão. “Visto que já era noite, encostei-me a um muro e dormi. Na madrugada, o frio intensificou-se e as dores pioraram”.
No dia seguinte, sábado, 24 de Março, Maria voltou a olhar para os dois lados da rua, esperando ver ao menos uma viatura igual a que tinha ido deixá-la naquela “amargura”. “Ainda tinha a esperança de que o meu neto viesse levar-me para o hospital, porém, mais uma vez, uma outra noite caiu, sem que ele se fizesse presente. Comecei a sentir uma grande angústia, mas desanuviei a tensão”.
Mesmo angustiada, Maria passou mais uma noite ao relento. Desta vez foi pior porque, para além do frio, enfrentava a mais nobre das necessidades fisiológicas, a da alimentação. De referir que passou pouco mais de 24 horas sem comer, com o agravante de estar doente.
No dia seguinte, por volta das 21 horas, alguns jovens aproximaram-se para saber dos motivos que a tinham levado àquele local. Foi aí que se ficou a saber do triste cenário a que ela estava votada. Depois disso, foi levada para o posto policial de Matendene, onde passou as noites de domingo e segunda- feira.
O oficial de permanência que se encontrava de trabalho garantiu as mínimas condições para que ela pudesse descansar, se é que isso era possível. Os jovens que lhe socorreram fizeram questão de levar comida para a esquadra.
Ela viria a ser levada por uma conterrânea, a qual tem prestado assistência e oferecido alojamento, alimentação e tratamentos de que a idosa necessita, enquanto espera pelos familiares da Maria, sobretudo pelo neto que a terá abandonado.
Mas engane-se quem pensa que ela quer que a idosa volte ao convívio da família (?),que a abandonou. Ela só quer que eles (os familiares) dêem uma explicação àquilo que está a acontecer, se é que existe.
Mas tudo indica que ela terá de esperar por mais tempo porque, segundo o chefe do posto policial de Magoanine “C”, Lázaro Mafume, a família já foi identificada e contactada mas recusa-se a comparecer à esquadra e muito menos levar a sua parente, neste caso a idosa, de volta.
Perante esta atitude, a polícia pretende levar o caso à Justiça para que esta tome medidas de forma a chamar à responsabilidade a família de Maria. Enquanto isso, ela continuará a contar com a boa-fé da sua conterrânea.
Este caso só vem mostrar quão a situação das pessoas de terceira idade é preocupante em Moçambique. Muitas têm sido acusadas de feitiçaria, outras despojadas do seu património, expulsas de casa, enquanto outras são abandonadas pelos filhos, como aconteceu com Maria.
Um estudo levado a cabo pela WLSA (uma organização não governamental) constatou que o idoso enfrenta desafios, tais como negligência caracterizada pela falta de respeito, intimidação, violência física e psicológica, solidão e humilhação, assim como maus tratos e expulsão do seio familiar e da comunidade e até assassinatos.
A acusação de feitiçaria tem causado conflitos de bens principalmente depois da morte do marido, no caso das mulheres, havendo casos em que os filhos tiram os bens da viúva.
Os abusos, segundo o documento, ocorrem com mais frequência em Maputo (cidade e província), Nampula, Gaza e Tete.