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Pandza: A Chuva

A nuvem irrompeu manchando o céu. Uma nódoa cinzenta impondo-se sobre o azul, ganhava corpo e escurecia. Quando o céu ficou pesado, insuportando o peso vaporoso daquela nuvem, uma gota desprendeu-se e caiu. Não com a doçura do choro de um chuvisco normal, mas grossa e groceira, com desprezo de um cuspo.

Da goela dos céus, escarros dos deuses começaram a trovejar violentamente. A velha olhou apreensiva para aquele desprezo da natureza. Viu o chão rachado de seco engolir, com a urgência da sede, aquelas gotas.

– Gota grossa é chuva feia – deu, a velha, informação meteorológica, rebuscada do fundo da sua secular sabedoria. Falava linguagem de provérbios, que os espíritos não entendem e os mais velhos usam para abordagens sérias.

– Este rio – apontou para um fio de água que restava do rio sazonal – não gosta ser molhado. Quando molha zangua muito.

Chuvas e dias passaram, o rio, zangado de se molhar, começou a inchar, a correr muito, a crescer e sair do leito. Parecia uma locomotiva louca em excesso de velocidade, arrastando mil vagões sem respeitar o trilho da linha férrea.

Só quando as águas saídas das margens golfaram para dentro das casas, é que vieram as autoridades, aquele senhores engomados, arrogando conhecimentos sobre chuvas, evacuar as pessoas, dos lugares que chamaram zonas de risco.

– Os meus animais! A minha machamba! – gritava a velha, enquanto a levavam compulsivamente dali.

As autoridade não sabem que quando saímos do lugar onde pingou o nosso suor, onde plantámos as nossas árvores, onde fizemos as nossas machambas, onde enterramos cordões umbilicais nossos e de nossos filhos e netos, ficamos sem chão e os nossos antepassados ficam sem saber onde nos visitar para nos proteger do mundo.

Também não sabem que a convivência com os bichos que criamos os torna da família. Cria-se uma consaguiniedade nas almas. Neles também se hospedam os xipocos, sortes e azares, da família.

Nessa noite, chamada pelo instinto materno, a velha saiu do acampamento de Deslocados das Cheias e foi acudir os seus entes irracionais. Com uma capulana na cintura e outra a fazer de guarda-chuva, atravessou a floresta densa de pingos, sulcando caminhos no chão molhado.

A água subia à medida que se aproximava da casa. Primeiro lambia-lhe as canelas, depois os joelhos, quando lá chegou estava-lhe pela cintura. O caniço da casa inclinava-se à pressão da corrente. Da machamba só se via o topo das torre de espigas.

Apressou o passo trêmulo, até a capoeira. Assustadas com os trovões e relâmpagos que rebentavam fora daquele refúgio acanhado, as galinhas empoleiraram-se onde puderam para se safar da água.

– Os pintos? – Perguntou-lhes a velha, adivinhando a resposta dramática no silêncio das aves.

Do outro lado as cabras esforçavam-se para manter a cabeça fora da água. Correu, batendo com os ossos, quase nadando, até elas. Abraçou maternalmente a mais aflita e quando quis cobri-la com a capulana, a água arrastou o pano. Antes que tivesse tempo para reagir, viu a corrente derrubar a capoeira e os outros bichos levados em agonia. Abraçou a cabra, agarrou-se à uma estaca flutuante e deslizou inexoravelmente ao sabor da corrente.

Com a água cada vez mais enfurecida, esbracejando e segurando a cabra, a velha sentiu-se projectada sobre um obstáculo. Era a sua casa. Agarrou-se aos caniços. Mas a corrente, impetuosa investia contra a construção, que começou a ceder e aos poucos deslizar. Perdida no turbilhão negro das águas, viu-se a submergir e arremessada à casca grossa de um tronco ao qual, sem largar a cabra, se agarrou.

Acomodaram-se, abraçadas, entre dois galhos, mal cabendo. Quando um relâmpago rasgasse o escuro, percebia-se o pesadelo da paisagem ao redor: um mar de águas negras e furiosas, até perder de vista. Árvores derrubadas e entulhos enormes passavam por elas na boleia da corrente. Chovia enfurecidamente.

As águas lhe varriam as perna. A contracorrente a arrastava para o fundo. O vento uivando e sacudindo as árvores com rajadas violentas, parecia divertir-se com aquela desgraça. A cabra pedia socorro com repetidos mééé. A árvore parecia que ia tombar. Em desepero, lutando para se manterem apoiadas, a velha começou a cantar, músicas de cerimónia, aquelas de apaziguar com espíritos, mas o fragor da tempestade lhe abafava a voz.

Já sentia os músculos dormentes pelo esforço e a temperatura do corpo baixando, quando a fúria da tempestade abrandou. Sem tanto vento nem tanta chuva, e com os olhos já habituados ao escuro, percebeu na aflicção trêmula das folhas da árvore, uns brilhos diferentes.

Que luzes seriam no fundo molhado daquele túnel? Cansada, ajeitou-se no tronco húmido e escorregadio. Olhou melhor e percebeu as escamas, os olhos e o movimento. Uma cobra! Era uma cobra em reivindicação territorial.

Amanhecia, e a chuva recomeçou…

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