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…também, “20 Dizer” Zé!

...também

No dia em que eu, Zé Rui Martins, “20 Dizer” Moçambique, a verdade sobre as razões que eternizam a miséria dos pobres enquanto uma minoria de pessoas detentora do poder prospera – em prejuízo dos primeiros – ficou desnuda. Que pena, mesmo assim, pouco se pode fazer…

Se se considerar que nos dias que correm ninguém, ainda que isso pareça exagero, gosta de dizer ou de ouvir que se fale a verdade, facilmente se pode perceber o espanto que tivemos em relação aos estrondosos aplausos com os quais se acolheram as verdades – por vezes incisivas – ditas por Zé Rui Martins.

Zé, homem com um pendor artístico invulgar ao nível das artes cénicas, celebra 30 anos de carreira, declamando, teatralizando poesia e crónica. Aliás, há vezes em que o artista cria, noutras recria obras de arte objectivas e abstractas.

A arte que faz não se difere de uma forma adequada de/para influenciar os homens (moçambicanos, portugueses, brasileiros, entre outros) que demandam os seus concertos para reflectir, não somente nas suas relações – as humanas – mas, acima de tudo, no modo como os políticos, a quem se encarrega a orientação dos seus destinos, o fazem.

O artista, de nacionalidade portuguesa, está em Maputo onde, por ocasião do V Festival Marrabenta, empresta o ócio do seu ofício – ao nível da produção de eventos culturais – para que as festividades culturais que iniciaram ontem sejam um êxito.

Como tal, mesmo com as inúmeras actividades que possui no referido sector, “o vírus de dizer palavras, senti-las e a partir delas produzir arte” – de que não se desprende desde que o infectou – não lhe sossega. Neste contexto, muito recentemente, convocou alguns amigos e admiradores para lhes apresentar o concerto “20 Dizer”.

O evento, altamente concorrido pela comunidade europeia em Maputo, com especial enfoque para a portuguesa, foi um momento nostálgico. O calor intenso que se faz nesta “Cidade das Acácias” não impediu alguns de se sentirem em Tondela que é uma pequena cidade portuguesa localizada em Viseu, onde Zé nasceu.

Arte ao serviço da revolução

Se o concerto “20 Dizer” teve algum mérito, tal, não se deveu apenas à persistente luta travada pelo protagonista em defesa da arte ao longo dos anos.

Mas à lição que nos dá no sentido de perceber- se que as crises vigentes (a económica e financeira em particular) não somente assolam Moçambique, muito menos Portugal apenas. Trata-se de um fenómeno global, cuja “culpa” não é e jamais seria da produção artística. Antes pelo contrário.

De qualquer forma, a selecção dos textos declamados revela-nos que se encontrava no íntimo daqueles artistas uma pretensa vontade de reverter a crise que nos ensombra.

Ofusca o desenvolvimento das artes e dos seus praticantes nos países pobres – como o nosso. Por isso, a arte deve ter a capacidade de “dizer ao senhor ministro que a gente, no teatro, tem uma capacidade imensa de resistir às crises. Não será cortando o financiamento às artes e à cultura que conseguirão acabar connosco”. Foi assim que nasceu a obra “20 Dizer”, cuja estreia foi em Março do ano passado em Portugal.

Não tardou muito para que aquele trio (Zé, Cheny e Luísa Vieira) fi zesse uma combinação simplesmente interessante entre a flauta e a mbira para promover mudanças na sociedade. Até diríamos revoluções sociais.

Afinal, a selecção criteriosa dos textos e dos autores feita para a realização do referido evento em Maputo denunciou isso. Basta reparar-se que se recitaram textos de artistas como José Craveirinha, Marcelino dos Santos, Mia Couto, Rui Nogar, Luis Bernardo Honwana, Eduardo White entre outros que – através de sua arte – lut(ar)am pela transformação da nossa sociedade.

Esta escolha propositada de artistas – a quem podemos considerar de poetas militares – denuncia a necessidade de se transformar os nossos países em sociedades cada vez melhor. Em nações, onde “a solidariedade e o respeito mútuo pelas nossas múltiplas e preciosas diferenças” reine.

Como tudo se complicou?

Vale a pena (re)ler as histórias que o nosso artista nos conta. Mesmo que para o efeito seja necessário comprar novamente os livros. Elas – as histórias – foram escritas para a nossa nutrição moral, intelectual e cultural.

Mas percebamos como tudo iniciou, até que a vida dos homens se complicou. Em certo bar, na verdade, um ponto de encontro de muitos intelectuais “discutia-se a questão da emancipação da mulher”, lembra Zé Rui.

“O jornalista afirmava que o homem e a mulher deviam ter direitos iguais. O escritor criticava a exploração da mulher como objecto. O cineasta enaltecia a sensibilidade feminina. O poeta cantava que uma mulher moderna devia ser uma companheira e não uma deusa”. Até aqui tudo estava certo.

Terminado o encontro, todos os homens sábios regressaram às respectivas casas, supostamente para pôr em prática as lições acordadas.

“O jornalista sentou-se na sala a ler o jornal, enquanto na cozinha a mulher preparava o jantar. O escritor pegou num rascunho enquanto a mulher dava banho ao bebé. O cineasta preparou uma película enquanto no corredor a mulher lhe passava uma camisa. E o poeta foi para casa da mãe porque era solteiro”. A partir daí, engendrava-se a violência no seio familiar, o núcleo da sociedade.

Pior ainda – sucedeu que no espaço social se multiplicaram “homens preguiçosos que não querem trabalhar; mulheres vaidosas que trajam roupa curta; que abrem o joelho p´ra cá; que usam outra safadeza, fazendo a gente pecar”.

A metáfora do bode

O enredo que na verdade se confunde com uma fábula começa assim: “Julião amava os animais… Mas o que realmente o encantava era o bode”. Não tardou muito até que em certo dia encontrasse um.

“Era um bode jovem mas já com barba digna, que ficava a olhar para tudo com desdém, como prevendo inúmeras desgraças. Afeiçoaram-se um ao outro.

Julião esmerava-se no tratamento e o bode, compreendendo que estava numa casa de respeito, passara a marrar apenas em polícias e cobradores”, assim escreveu Henrique Leiria um dos autores lidos por Zé Martins.

Diga-se, Leiria não se esqueceu de denunciar o grave problema do quadrúpede (?): “comia, comia muito, comia tudo”.

O acto tornou-se vicioso. Certo dia, o “bode teve um apetite feroz. Foi à secretária do chefe e comeu todos os processos em andamento que faziam a cabeça em água aos funcionários.” Mais adiante, “os chefes sucederam-se, os ministérios mudaram”. Mesmo assim, em contra-censo, o “bode continuava na repartição, sempre jovem e activo”.

Diante da situação as entidades de direito ficaram impávidas até que, um dia, “se deu o acontecimento decisivo”.

“Poderoso, imarcescível, o bode entrou pelo gabinete do ministro e comeu, logo ali, o decreto de mobilização geral que estava a despacho”.

Condicionou o financiamento da cultura em Portugal pela “nocividade” de despertar na população um sentido reflexivo, crítico, independente e transformador. “Foi eleito deputado pelo povo em delírio.”

Foi desta forma metafórica que Zé Rui Martins se referiu ao tema da corrupção e dos corruptos nos estabelecimentos/ repartições estatais.

…e o pobre é empobrecido

Outra lição não menos importante que se pôde aprender do “20 Dizer” foi o estado precário do ser homem na terra. A vida torna-se uma precariedade devido a algumas acções que, apesar de condenáveis, são as mais promovidas pelos homens detentores do poder. As guerras, por exemplo.

Os conflitos armados – entre outros males sociais – instalam continuamente um clima de medo e terror. Repare-se, por exemplo, que os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os desempregados receiam nunca mais encontrar trabalho. “Quem não tem medo da fome tem medo da comida. Os camionistas têm medo de caminhar, os pedestres têm medo de ser atropelados”.

E mais, os “civis têm medo dos militares. Os militares têm medo da falta de armas. As armas têm medo da falta das guerras”. Onde vamos com os temores infundados que nós criamos?

Na mesma perspectiva de abordagem, Zé Rui não perdeu de vista o seu objectivo. Colocou-nos uma pergunta sobre a qual considera que “nenhum noticiário em televisão, rádio ou telejornal jamais responde”. Afinal, “nas guerras quem dá armas?”

O facto é que temos “cinco países que são os principais vendedores de armas no mundo”. Tais Estados “têm o direito do veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas. São os que cuidam da paz (…) os que cuidam do negócio da guerra”.

É lamentável termos de reconhecer que – numa situação em que o mundo observa uma escassez de víveres – “do ponto de vista da economia, a venda de armas não se distingue da venda de alimentos”.

Por isso, “os últimos números de organizações internacionais como o UNICEF, a ONU e o Banco Mundial permitem-nos afirmar que se o mundo dedicasse 12 dias. Somente 12 dias, com o dinheiro investido em armamentos, para ajudar as crianças pobres. Elas poderiam ter escola, assistência médica e comida”.

“Só com 12 dias de gastos voluntários. Filhos da p…”, o artista desabafou visivelmente emocionado. Recorde-se que o concerto “20 Dizer” foi protagonizado por Zé Rui Martins (no recital e representação), Luísa Vieira no canto e sopro, bem como pelo moçambicano Cheny Wa Gune, na mbira.

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