Caso um olhar diferente – sobre a importância do livro na sociedade – não se edificar, muitas bibliotecas nacionais continuarão órfãs. Em contrapartida, a Biblioteca da Matola, que desencadeia “um combate pelo saber”, está a safar-se da orfandade e pode ajudar muita gente a se libertar das algemas da ignorância.
Uma enorme combinação de factores pode ser invocada para explicar a fragilidade da qualidade do nosso ensino no país.
Dentre todos, a biblioteca, uma a aldeia do conhecimento, por excelência, não ocupa um espaço trivial. No entanto, do outro lado de Maputo (senão em muitos outros do país), o município da Matola debate-se com a exiguidade de manuais na biblioteca local já há bastante tempo. Com meia dúzia de livros, um edifício lendário – apenas um – com meia dúzia de manuais, assume as funções bibliotecárias.
O número de habitantes na Matola evolui. O de potenciais leitores também. Potenciais leitores porque aquela instituição, com o material didáctico que possui, só pode alimentar o segundo ciclo do ensino primário, a algumas classes do ensino secundário geral, bem como um numero insignificantes de cursos – fora da moda, que não chegam a cinco – do ensino universitário.
Enfim, a biblioteca perde a estrutura de desempenhar o seu papel primordial, o de promover a cultura de leitura, porque está desprovida de condições para tal.
Recusa-se, de forma sistemática, o conhecimento ao povo, condição essencial para se existir num país democrático. Ainda, diz-se, se pretende construir uma nação!
Uma campanha pelo saber
É sobre estes tópicos que, muito recentemente, conversámos com Júlio Mutisse (que, em tempos, foi vereador para o sector de Recursos Humanos, Arquivo e Documentação e) que presentemente dinamiza a “Campanha Pelo Saber”, ao abrigo da qual tenciona dar um novo fôlego àquela instituição.
Até o período anterior à cessação de suas funções como vereador da Matola, uma das funções de Júlio Mutisse era a de trabalhar (afincadamente) para operacionalizar a biblioteca local.
Afinal, ainda que a referida instituição tivesse um edifício faustoso – e nos últimos meses do ano passado com uma sorte de apoios em material didáctico – o mesmo não estava altamente apetrechado para fazer jus à sua função.
Esta realidade – triste para uma instituição vocacionada ao conhecimento e cultura – levou a que Mutisse desencadeasse um movimento a favor da instituição. Foi assim que nasceu a “Campanha Pelo Saber”.
“A biblioteca é uma das coisas em que eu acredito bastante. Eis que eu disse para mim, tenho amigos capazes, muitos dos quais virtuais a quem se se fizer um apelo para contribuir no apetrechamento da biblioteca pode dar certo”, conta Mutisse.
Não tardou muito para que, recorrendo à rede social Facebook e, recorrendo ao circuito de correios electrónicos (emails) de que se dispõe, lançou-se um apelo, a solicitar que cada cidadão contribuísse com pelo menos um livro do seu espólio.
“Ora, o nome “Campanha Pelo Saber”, surgiu-me ao acaso. Foi algo em que eu pensei que pudesse chamar a atenção das pessoas. Desde lá a esta parte, os resultados são animadores”, conta.
Os resultados
Segundo Mutisse, muitas pessoas (moçambicanos e estrangeiros) e instituições, incluindo o Jornal @Verdade, associaram-se ao movimento. Por exemplo, a Operadora de Telefonia Móvel, Moçambique Celular prontificou-se em ofertar um conjunto de 10 computadores para a biblioteca matolense.
Aliás, vale a pena referir que esta campanha não somente se limita ao livro mas também a todos os objectos susceptíveis de serem utilizados num espaço votado a cultura e conhecimento.
“Temos ainda uma enorme quantidade – não especificada de livros – oferecidos pela Standard Bank. Em pouco tempo, ainda no âmbito da mesma campanha, o Centro de Formação Jurídica e Judiciária ofertou cerca de 80 livros com títulos diversos.
E aqui importa referir que esta conexão foi estabelecida pelo célebre sociólogo moçambicano, Carlos Serra”, reporta o dinamizador da Campanha pelo Saber.
Um contentor de livros
Se um dos méritos da “Campanha Pelo Saber” é devolver a vida a uma instituição essencial na formação da sociedade, então a das redes sociais será juntar diversas pessoas em independências das geografias pelo mesmo objectivo. Senão vejamos:
Um outro conjunto vasto de pessoas está a responder favoravelmente ao apelo, alguns dos quais estrangeiros ou mesmo moçambicanos a residir fora do país.
O exemplo mais próximo é o de um grupo de amigos brasileiros que está a organizar-se no sentido de enviar – a Moçambique – um contentor de livros.
Desta vez, “o problema será desalfandegar o material no Porto. Por isso, penso que teremos de envolver o Município da Matola no sentido de pagar o frete”, refere Mutisse.
Personalidades e pessoas não muito conhecidas associam-se continuamente à campanha. A Zenaida Machado (a jornalista ao serviço da BBC, em Londres, que se diz possuir uma mala de livros a ofertar aos matolenses) é mais um exemplo.
Isto faz com que, ao que tudo indica, seja possível duplicar-se os “ganhos” de livros, na biblioteca, a partir deste movimento, potenciando-a cada vez mais.
Bairros sem biblioteca
Dados estatísticos do censo populacional revelam que, até o ano de 2007, a Cidade da Matola possuía uma população de 678.508 habitantes.
Parte significante deste número é composta por jovens estudantes. No entanto, não são todos os postos administrativos e bairros da Matola que possuem bibliotecas. Aliás, a Biblioteca Municipal é uma das poucas alternativas para quem se candidatar à leitura.
Por isso, “quando se pensa nos serviços bibliotecários na Matola, a primeira meta que se define é a de equipar o (primeiro) núcleo que funciona no bairro da Liberdade e – se for possível – passar a cobrir os postos administrativos de Infulene e Machava”, afirma o antigo vereador.
Isto equivale a afirmar que, caso consigamos livros acima da quantidade necessária para apetrechar a biblioteca central, ao invés de nos limitarmos a trabalhar unicamente para ela, pode- -se aventar a possibilidade de se abrir novas bibliotecas em outros locais daquela urbe.
Até porque, em certo sentido, a criação de novas bibliotecas é uma necessidade sempre presente. Basta reparar que, na Machava, se vai abrir a Escola Secundaria de Nkobe e não há uma biblioteca naquela região.
Em Infulene, temos a Escola Secundária de Zona Verde, ao mesmo tempo que está sendo edificada a de Khongolote e não há bibliotecas. Recorde-se que Infulene é a região da Cidade da Matola com maior número de população.
Envolver os deputados
Ao encontrar relevância especial na Campanha Pelo Saber, o deputado da Assembleia da República, Ismael Mussá, exortara ao mentor desta iniciativa a expandi-la até à Casa do Povo. A ideia é rogar os 250 deputados a oferecer livros e/ou apoiar a iniciativa.
“Já imaginou o quão seria útil se cada um dos parlamentares oferecesse pelo menos um manual a uma instituição necessitada?”, questiona.
“Vamos dar saber aos matolenses – porque o livro possui conhecimento – e muitas vezes apreendemos manuais ricos em conhecimento de sem fundamento”, realça.
Ora, o mais importante é que se se conseguir envolver maior número de pessoas na campanha, podemos construir uma nova plataforma – ainda não existente – para recordar à sociedade da importância que uma biblioteca possui.
Afinal, é lamentável percorrermos a cidade inteira e não encontrar, no mínimo, um total de 10 bibliotecas operacionais, numa situação em que há tantos (potenciais) leitores.
O nível de leitura baixou
Para Júlio Mutisse, a recolha de livros para enriquecer o acervo bibliotecário do Município da Matola constitui a primeira fase de um projecto ambicioso.
Sobretudo porque, analisando o nível de leituras, mesmo na Biblioteca Nacional, ocorre-se-lhe que não é tão alto quanto devia.
Isto equivale a dizer que numa segunda fase “teremos que mobilizar as pessoas a aceder cada vez mais às bibliotecas”.
“A origem da internet – e outros cenários sociais – aumentou a preguiça das pessoas em relação ao hábito da leitura.
Não culpo, necessariamente, a internet mas sinto que, de facto, temos pouca cultura de leitura”, diz Mutisse, ao comentar a questão da fraca leitura.
E não lhe falta exemplo: “Se recuarmos uns 15 – 20 anos, iremos perceber que havia, no país, uma cultura de aceder às tabacarias para realizar trocas de livros usados. Os mesmos passavam de mão em mão, de tal sorte que todos líamos as mesmas histórias”.
Ora, opostamente a isso, “o que se percebe na actualidade é que é muito normal encontrar adolescentes que nunca leram uma banda desenhada.
É muito normal encontrar pessoas adultas a discutir – de forma leonina – a política sem nunca antes terem lido algo sobre o assunto.
Tudo isto porque não existe a cultura de leitura. Ainda que nos dias que correm haja maior disponibilidade de livros do que há 20 anos, para uma realidade anti-leitura. As pessoas lêem cada vez muito pouco.
O cenário é tão crítico de tal sorte que, daqui há alguns dias, teremos de mobilizar as pessoas para lerem ou para irem à biblioteca”.
Matola deve respirar cultura
@Verdade: Qual era a situação da Biblioteca Municipal da Matola antes de se instaurar a Campanha Pelo Saber?
Júlio Mutisse (JM): Tinha livros suficientes para o ensino secundário geral, bem como para os primeiros anos da universidade com destaque para os cursos de Direito, Economia e Contabilidade.
A oferta existente era muito limitada (e continua a ser). Por isso, continua havendo esta necessidade. Por exemplo, em relação ao equipamento de material informático, a biblioteca está bem servida.
O investimento em espaços bibliotecários na Matola envolve muitas coisas, sobretudo, porque se pretende que aquele seja um espaço cultural por excelência.
@Verdade: Fala da necessidade de se explorar os espaços culturais, mas os jovens (artistas) dizem não ter espaço para arte na Matola?
JM: O problema é que nós, os moçambicanos, no lugar de criar espaços alternativos passamos a vida a reclamar sobre o problema de espaços.
A gente sabe que se, por exemplo, um grupo de teatro local na Matola tencionar actuar no Auditório Municipal pode ser que, a taxa que lhe será aplicada para arrendar o espaço, pareça proibitiva.
Porque não experimentar uma alternativa, fazer um espectáculo ao ar livre, para ver se se será bem ou mal sucedido? Isto significa que temos que começar a criar novas alternativas para que possamos ser vistos como pessoas capazes e, conquistarmos o nosso espaço social. Só assim, as portas – para a conquista de apoios – podem- se abrir.
@Verdade: Como é que avalia a Matola, olhando para a sua dinâmica cultura?
JM: A Matola já foi sonhada como uma capital da cultura. Ainda bem que já começaram a surgir movimentos que consubstanciem esta pretensão. A realidade daquela urbe impele-nos a assumir que a Matola é rica em espaços que podem ser utilizados para a dinamização das actividades culturais.
Enquanto eu era vereador, sempre insistimos que a biblioteca da Matola não devia ser unicamente utilizada apenas como um espaço de leitura, mas também de realização de concertos musicais, de teatro, de mostras de arte, de saraus culturais, etc.
Isto equivale a dizer que todo os espaço matolense respira cultura, cabe aos munícipes saber explorá-lo da melhor forma. Portanto, é preciso reactivar esta dinâmica cultural e fazer com que as pessoas voltem a se habituar a mesma.