Sou do tempo em que se jurava que o ano dois mil seria o fim do mundo. Parávamos de brincar, afinávamos as pestanas e a mão na testa protegendo-nos do sol, olhávamos para o horizonte como se espreitássemos a lonjura do tempo, atentos e temendo a aproximação daquele ano. Nunca soubemos se seria um fim do mundo no sentido de perdição ou de salvação, se uma grande bola de fogo cairia sobre nós ou se alguma Arca de Noé nos resgataria de uma eventual inundação.
Dois mil era um número muito redondo, zeros demais para a nossa ingénua meninice. Para nós, os anos tinham de se chamar mil novecentos e tal. Chamar um ano de dois mil, seria impossível! Nem o tempo iria aguentar ser chamado de dois mil. Parecia um palavrão. E mesmo que aguentasse teria de parar a sua contagem por ali, pois para o nosso curto horizonte de algarismos, não existia numeração além de mil e novecentos e tal. Não existia mil novecentos e dois mil! Isso dava mais sentido à tese do fim dos tempos.
Enquanto as rodas dentadas do tempo engrenavam as suas ferrugens e giravam lenta e silenciosamente, os ratos ganharam um parente informático, o mouse. Os correios dispensaram os selos e os envelopes,e passaram a ser electrónicos. As máquinas de escrever passaram a fazer muito mais coisas e passaram a chamar-se computadores.
Os telefones começara a andar nos bolsos das pessoas, já não usando aquela coleira que lhes acorrentava num canto da casa. Já não precisávamos de sair de casa para ir a qualquer site. Era o ano dois mil a aproximar-se e a ideia do fim do mundo evoluia com a tecnologia. O fim do mundo passou a chamar-se bug! uma palavra curta mas violenta, que lembrava uma explosão.
Levamos tempo a perceber o que era o bug, o tal apocalipse electrónico que ameaçava os computadores, à hora zero do início do milénio, por isso a vinda do ano dois mil foi comemorada com muita cautela.
Chegou o ano dois mil. As máquinas não explodiram nem elouqueceram, mas a alegria durou pouco. Devagarinho as máquinas começaram a ficar lentas. Cansavam- se inexplicavelmente. À cada operação, por mais simples que fosse, encravavam, e pediam um restart para descansar. Pareciam envelhecidas. Aos poucos perdiam utilidade, engoliam ficheiros, abortarvam operações, aqueciam numa febre de meter pena. Uma a uma, desmaiavam!
– Estas máquinas estão doentes!
– Como é possível? Estas máquinas são novas, moderníssimas – desabafou um colega.
– É o bug! – gritei.
– Só pode ser vírus. Vamos correr o anti-vírus – ignoraram-me.
– Não, já é tarde, já está infectado, chamemos o informático. Chamaram o informático, o médico dos computadores. Sentou-se à frente das máquinas, ligou e desligou, mexeu e desmexeu, abriu e fechou, teclou e clicou e disse convencido:
– Ah, estas viroses! O vosso antivírus está ultrapassado, vamos fazer um upgrade. Instalou o novo antivírus. Quando fez correr obteve respostas esquisitas. Pensou, telefonou, pesquisou, consultou. Transpirou, desmontou, montou, nada!
– É o bug isto aqui – insisti, baixinho, para o meu colega.
– Vamos formatar, vai se perder toda a informação, não há outra hipótese – dizia, desesperado, o informático.
Formatava e nada! Levou as máquinas para o hospital dos computadores e deu-lhes baixa. Semanas depois trouxeram e afirmaram, derrotados:
– Desconseguimos!
– Estes gajos não sabem nada, vamos mudar de técnicos! – mudámos e nada!
– Só pode ser xipoco – comentou um colega – este escritório precisa duma lavagem.
– Xipoco digital? – perguntei.
– Sim, – respondeu – é a evolução da tecnologia.
– É o bug isto aqui, to a dizer eu – insisti.
E chamaram um curandeiro para exorcisar as máquinas. Veio confiante, sentou-se, concentrou-se, comunicou com as pedras, ossos e búzios. Diagnosticou muitos males. Culpou antepassados e vizinhos, matou galinhas, chamou e expulsou expíritos, receitou missas, cobrou, mas nada!
– Aqui ainda há muito trabalho! – exclamava – mas é trabalho de espíritos virtuais, eu só domino a ciência dos espíritos naturais, e esse já está feito.
Chamaram-se outros técnicos. Depois outros. Estava difícil e acusava-se agora os técnicos de incompetência.
– Estes moçambicanos são incompetentes! – dizia um branco.
Chamaram-se os sul- africanos e portugueses, parceiros mais acessíveis, e nada! Chamaram-se outros, pareciam franceses ou americanos, reuniram-se em segredo e diagnosticaram, com muita pena, que os computadores todos iam falecer. Não havia ainda cura. Em todo o mundo sucedia o mesmo.
– É uma espécie de vírus altamente contagioso – explicou o médico de computadores – que se propaga pela rede, internet. Ataca o sistema de defesa da máquina. Adapta-se e destrói qualquer antivírus.
Está a preocupar o mundo. Por causa da internet o vírus está em todo lado. Renderam-se ao oriente e chamaram os amarelos, mais doutos em tecnologias. Estes confi rmaram que era sim, um vírus ainda sem antídoto tecnológico. E as máquinas morriam.
Reuniram-se com a Organização Mundial de Saúde Informática, concluíram que o melhor remédio para estas coisas sem remédio podia ser a prevenção, evitando os contactos desnecessários entre computadores. Se cada computador se limitasse fielmente à rede do seu escritório talvez se contivesse a propagação.
– Temos que nos abster das redes. Inventem-se filtros, para irmos à internet protegidos.
Era o bug, eu sabia, a acontecer lentamente. Mas ninguém me queria ouvir. Vou esperando o final desta história, para poder finalizar este texto, se até lá eu e esta máquina em que vos escrevo, sobrevivermos.