Querida Sissi:
Agarrei nas pedras que trouxe da praia e fui comprar um aquário para o Porsche. Não, ainda não estou louca, ainda não precisas de me internar, isto não é tão absurdo quanto parece. O Porsche é o nome da tartaruga que a minha empregada, num desvelo sincero e desajeitado, decidiu oferecer ao meu filho como presente de boas-vindas depois das férias.
Foi ele que lhe deu o nome, sem sequer pensar muito. Como todos os rapazes, nunca precisa de pensar muito para dar um nome às coisas, resolver uma equação ou encontrar uma saída para um problema. Nós é que somos seres complicados, sempre a analisar tudo, até se uma tartaruga deve ou não chamar-se Porsche.
As pedras vieram da praia. Todos os anos tenho esta pancada, volta e meia peço ao meu filho que me apanhe um punhado delas, lisas, ovais, de várias cores e matizes, suaves e silenciosas. Depois guardo-as no carro e quando regresso a casa e desfaço as malas, nunca me esqueço de as trazer. Ponho-as numa taça de vidro que me ensina a olhar para o acumular dos anos com uma falsa bonomia que de vez e quando engana a tristeza.
São sempre os mais pequenos pormenores que nos prendem aos homens que amamos: o tom da pele nas costas das mãos, dois sinais pequenos acima dos rins do lado esquerdo, o tom inconfundível da voz, o primeiro beijo, a forma de andar, o último abraço, as derradeiras palavras.
Depois da praia, eu guiava pela estrada estreita com ele ao lado, como outras vezes, quando dei por ele a fixar o olhar no meu perfil, como se me estivesse a fotografar, como se, naquele instante, medisse que importância eu tivera na sua vida, como se, desejei eu enquanto senti os seus olhos sobre mim, afinal não se quisesse afastar.
Nunca vou esquecer aquele olhar que fez com que, por alguns instantes, a pedra que trago encostada à garganta, tivesse rolado aos meus pés. E foi então que me lembrei do que ele disse quando nos conhecemos: We connect.
Percebi que mesmo depois de tudo perdido, falado, discutido e decidido, o coração dele ainda batia por mim. Aquele olhar dizia tudo o que ele não conseguiu falar. Dizia desculpa, dizia eu, gostei mesmo de ti, dizia eu, vou preocupar-me sempre contigo. Dizia o que uma pessoa de bem sente por outra que desejou, amou e com quem foi muito feliz.
Regressei em paz a casa, a mala cheia de tralhas, colchões, pranchas, chapéus de palha e o saco das pedras. Pela primeira vez em muitas semanas, dormi mais de 6 horas sem a ajuda de químicos. E hoje, quando acordei e percebi que a pedra da garganta ainda lá estava, respirei fundo e preparei- -me para mais um Inverno de solidão.
A tartaruga não fala nem pensa, come dois camarões liofi lizados por dia e tem domicílio próprio. Vive numa caixa de vidro em cima da mesa da sala da televisão, com vista para o jardim e para a piscina. Se os skimmers não estiverem ligados, pode nadar na imensidão azul, e por momentos, imagino que se sinta livre, num oceano fabricado, sem pedras para trepar nem paredes de vidro que a separem do mundo.
We connect, dizia ele, com as pernas entrelaçadas nas minhas, os dois sentados no chão da sala a fumar cigarros. A pedra encostada à garganta qualquer dia cai dentro do aquário – que já agora, ficas a saber, se chama tartarugueiro, rico nome, até parece uma coisa chique, de condomínio fechado – e eu volto a rir-me desses dias inesquecíveis, dos quais nunca me soube despedir.
Nunca queremos deixar de amar, nunca queremos que quem nos amou, nos esqueça. Porque somos tão apegados, tão burros, tão fáceis de enganar como a vida, que é sempre enganada pela morte? Não conheço nem estas nem outras respostas, mas quando voltares de Londres, antes de me internares numa casa cheia de loucos para me sentir mais saudável, vem conhecer o meu Porsche que anda mais depressa do que imaginas e só conhece as pedras que lhe deito no caminho e rir-te comigo do meu coração adolescente que nunca sabe dizer adeus.