Sofisso Ângelo Mucavel, que todos conheciam por Sufixo, deixou o mundo dos vivos no passado sábado, depois de mais um concerto no Franco-Moçambicano. Uma vida desregrada e sem amparo familiar, o álcool e a epilepsia levaram aos 18 anos um invulgar talento que tocava tudo de ouvido.
À porta da Associação dos Músicos Moçambicanos (AMM) o ambiente era de consternação na manhã da passada terça-feira. Nas traseiras, junto do bar onde um telheiro de chapa de zinco traz um certo conforto nos dias de chuva e de sol, jazia, num pequeno caixão de madeira clara, o corpo de infantil de Sofisso Ângelo Mucavel, o miúdo prodígio que tocava em todas as bandas e por isso nunca pertenceu a nenhuma.
Por causa desta ‘infidelidade’, chamavam-lhe também, por graça, mercenário, como se a música fosse uma guerra e Sufixo – assim era chamado – quisesse ser um combatente.
Na manhã do passado sábado, após mais uma actuação no Franco-Moçambicano na noite anterior, o seu corpo, franzino, cansado e doente, perdeu a batalha da vida e a morte apanhou-o no seu catre, ali bem ao lado da AMM, a sua casa de sempre. Sufixo iria completar 19 anos no próximo dia 1 de Outubro.
Registado como filho da prima
A vida de Sufixo correu célere, tão célere como a forma como a música lhe penetrava no ouvido. Nasceu na África do Sul e aos cinco meses cruzou a fronteira para ser entregue pelo pai, que vivia há muitos anos na África do Sul, aos cuidados da avó paterna que vendia bebidas tradicionais no mercado para sustentar a família.
A mãe, sul-africana, morreria pouco tempo depois. O pai sobreviveria mais uns anos, não muitos. Documentos que identificassem o bebé não havia nem um para amostra.
“Quando ele estava doente, como a minha avó não falava português, era eu que o punha às costas e ia com ele ao hospital”, refere a prima Benigna Augusta, enquanto dá o peito ao filho mais novo. E acrescenta: “Complicavam-me muito a vida porque pediam-me dados que eu não sabia.”
Cansada de promessas que nunca chegavam Augusta resolveu ir com o BI e duas testemunhas ao registo dizer que Sufixo era seu filho. “As coisas tinham que andar para a frente. Por isso é que ele tem o meu apelido.”
A viver paredes-meias com a Associação dos Músicos Moçambicanos (AMM), Sufixo, desde os cinco anos de idade, fez desta sede a sua segunda casa e muitas vezes até a primeira.
“O Sufixo era a mascote desta casa. Foi aqui que ele começou a brincar com os tambores e com os músicos mais velhos do Timbila Muzimba. Aqui debaixo desta mangueira”, lembrou, emocionadamente, o músico Hortêncio Langa que em tempos foi secretário-geral da AMM.
“Mais tarde começou a subir para a bateria e os pés dele mal chegavam aos pedais. Ele ficava escondido por detrás dos pratos. Todos nós sentíamos que era uma pessoa que adorava música. Tinha um enorme talento e um sentido de ritmo muito forte.”
Quase raptado na Suazilândia
Efectivamente, no seu corpo infantil – quem não o conhecia não lhe atribuía mais de 12 anos – cabiam quilómetros de música, sobretudo na bateria.
Sufixo estava sempre pronto a tocar e a colmatar as faltas dos outros músicos. Aliás, esta polivalência valeu-lhe actuações em quase todas as bandas de Maputo. Por isso, no gozo, chamavam-lhe o mercenário. Mas o seu desapego às bandas era compensado pelo seu apego à música e aos ritmos.
“Tocava tudo. Bateria, baixo, piano, timbila. Em tudo era auto-didacta. Era um computador. Ao ensaiar bastava ouvir uma vez e já estava a tocar. Tinha um ouvido fantástico. Muitas vezes a fama também dá cabo das pessoas”, refere, num tom fatalista, Baba Harris, secretário-geral adjunto da AMM.
Certa vez, estava Baba na Suazilândia à conversa com um guia turístico, quando este lhe disse: “Há um músico moçambicano muito pequenino que esteve cá uma vez a tocar num festival de reggae e as filhas do rei quiseram raptá-lo.” Baba, através de umas imagens que por acaso trazia na câmara, confirmou que se tratava de Sufixo.
“O guia contou-me que as filhas do rei ficaram de tal modo encantadas que queriam ficar com ele só que quando chegaram ao local a banda já se tinha ido embora.” A rir ficou também Sufixo quando Baba o pôs ao corrente da história.
Até ao limite
Com uma estrutura física muito débil, a epilepsia, descoberta aos 13 anos, e o álcool, corroeram nos últimos anos o pouco que havia para corroer. Era frequente ver Sufixo na barraca a beber até cair.
Os ensaios e os concertos até altas horas também não ajudavam a uma vida regrada. “Bebia muito sobretudo ao fim-de-semana. Ultimamente, andava com companhias muito estranhas. Depois dos espectáculos em vez de ir para casa iam beber com os músicos mais velhos”, refere a prima Augusta.
“Depois da morte da avó, em Junho passado, meteu-se ainda mais na bebida.” “Chegava a pôr cerveja preta na garrafa de Coca-Cola para me despistar. Posso dizer que nos últimos tempos era um alcoólatra”, diz Baba.
“Esta última semana foi horrível. Ele caiu debaixo do palco quando estávamos a experimentar os instrumentos.” Com a saúde a agravar-se diariamente, há cerca de um ano Baba levou Sufixo ao médico. A sentença foi claríssima: “O médico disse-me que com o problema de epilepsia se ele continuasse a beber podia mesmo morrer.”
Mas Sufixo não estava disposto a abdicar daquela vida anárquica, sem regras, de liberdade total, até ao limite. E o limite chegou na madrugada de sábado, após mais um memorável concerto no Franco-Moçambicano onde foi baterista dos Greens.
Dois ataques de epilepsia, um antes e outro depois do show, não o impediram de ir para os copos com os amigos. Chegou a casa por volta das nove da manhã e fechou-se no vão de escada onde dormia desde a morte do avô quando a avó se viu na contingência de arrendar a casa para alimentar a família.
Às 15 horas a tia estranhou a demora e foi chamá-lo para o almoço. Sufixo jazia, já frio, na chapa de zinco ondulada que lhe servia de cama com o rosto desfigurado por mais um ataque de epilepsia. Desta vez fatal.