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Verdade Direccionada: A propósito da condenação à morte do Oito de Espadas

Na passada terça-feira, fui surpreendido com um telefonema de um amigo e colega de profi ssão. “Já alguma vez apertaste a mão a um condenado à morte?”, perguntou- me.

Surpreso, atirei a resposta em forma de pergunta: – Então, o que se passa?

– O ‘nosso’ Tarek Aziz acaba de ser condenado à morte pelo Supremo Tribunal do Iraque – responde o meu amigo que, por acaso, é meu homónimo. Depois esclareceume e fiquei a saber que a razão da sua condenação deve-se ao facto de ter perseguido partidos religiosos, particularmente o Al Dawa, formação política radical chiita que nos anos oitenta tinha apoio do Irão, país que, como se sabe, esteve em guerra com o Iraque entre 1980 a 1988.

Assim, numa primeira apreciação, os motivos para a pena máxima, atendendo ao que se tem passado no atoleiro iraquiano, pareceramme de somenos. Ao telefone, apesar da distância, recordámos então a nossa viagem ao Iraque a convite de uma associação portuguesa que pretendia intermediar negócios com um país que sofria um duro embargo das Nações Unidas.

Estávamos em Janeiro de 2002 e o Iraque era governado pelo todo-poderoso Saddam Hussein. Nas ruas da capital, Bagdad, imperava uma organização que só as ditaduras permitem.

O trânsito automóvel era satisfatório e os mercados apresentavam-se bastante compostos, não sendo difícil adivinhar os constantes furos ao embargo. Falava-se de ‘zona de exclusão aérea’ e do programa ‘food for oil’ (petróleo por alimentos).

Bagdad respirava um antiamericanismo – acho mesmo que hoje, passados oito anos, respira ainda mais – materializado nas antiaéreas colocadas no topo dos prédios, nos capachos com a figura de Bush e nos discursos oficiais.

O ambiente era um pouco como aqui em meados dos anos oitenta com os sul-africanos, quando Samora pronunciou a célebre frase “Que venham! Que venham!”. O desfecho, graças a Deus para nós, é que foi bastante diferente, não chegando a verifi car-se qualquer invasão.

Naquela altura, fiquei com a sensação de que quem visitasse o Iraque, principalmente em solidariedade, era recebido como um rei. Assim tivemos a televisão pública à nossa espera no aeroporto e fomos recebidos por altos dignitários do regime, entre os quais o ministro da solidariedade, da saúde e Tarek Aziz, o rosto exterior, a face mais ‘humana’ do segundo regime mais desumano do mundo, depois da Coreia do Norte.

Aliás, a minha estadia coincidiu com a célebre declaração de George W. Bush em que este, no discurso sobre o estado da União, incluiu o Iraque, o Irão e a Coreia do Norte no chamado ‘eixo do mal’, facto que só veio acirrar ainda mais os ânimos. Do encontro com Tarek Aziz lembro- me dos profundíssimos corredores que percorri para chegar ao local onde ele nos esperava. Era um autêntico bunker, com uma segurança apertadíssima.

Na comitiva alguém disse com graça: – Isto é que são os verdadeiros corredores do poder! Lembro-me do seu rosto afável escondido por trás de uns grandes óculos de aros redondos e da delicadeza com que nos cumprimentou um a um – éramos cerca de 12. Lembro-me da caixa de charutos Cohiba que a delegação lhe ofereceu e ele fez questão, como mandam as boas regras de educação, de abri-la e pô-la à nossa disposição – tenho fotos, ainda em slide, dele a saboreá- los prazenteiramente.

Depois vieram as perguntas, às quais Aziz respondeu num inglês perfeito, delicado, de gentleman. Lembro-me de pensar como é que alguém tão fino, tão superior, conhecedor profundo da cultura britânica – licenciou-se em estudos ingleses -, que citava Shakespeare, Kant, Hegel, Marx e Nietzsche podia estar associado a um regime tão retrógrado e hediondo como o iraquiano.

Como é que alguém desta estripe podia servir com fidelidade canina um brutamontes, semi-analfabeto, facínora como Saddam. Percebi então que, tal como na União Soviética de Estaline, na Alemanha de Hitler, ou na China de Mao, também no Iraque de Saddam o medo conseguia tolher tudo.

Não estando em causa a cumplicidade de Aziz nos crimes de regime do partido Baas – afinal de contas foi um dos seus mais fiéis seguidores – sou da opinião de que o Supremo Tribunal do Iraque exagerou e muito na sua decisão, que foi sobretudo política e o poder judicial não pode estar, de maneira alguma, subordinado ao poder executivo.

Hoje, o poder em Bagdad está nas mãos do partido Al Dawa, o mesmo que Aziz perseguiu nos anos oitenta, chegando inclusivamente, em virtude disso, a sofrer um atentado.

Gostaria de esclarecer que sou acerrimamente contra a pena de morte. Quaisquer que sejam as circunstâncias, ninguém tem o direito de decidir se uma pessoa deve viver ou morrer. Aliás, sou da opinião de que a democracia americana não é plena exactamente pela existência da pena capital em alguns Estados.

No caso vertente de Tarek Aziz há várias atenuantes: o facto de não ser um dos cabecilhas no célebre baralho elaborado pelo pentágono – Aziz era o Oito de Espadas, o que só demonstra que não era dos principais ‘most wanted’ – o facto de ser ter entregado aos americanos logo após a invasão em 2003 e o seu débil estado físico – os sucessivos ataques cardíacos impedem- no de se deslocar sozinho – deviam ajudar a outro desfecho.

Talvez este desfecho tenha a ver com o facto de os americanos nunca terem perdoado a Aziz não ter deposto em tribunal contra Saddam. Aziz revelou, assim, outra qualidade: a fidelidade. Apesar de não pertencer ao clã de Tikriti, de onde eram natural os mais próximos colaboradores do ditador, foi, até ao fim, fiel a quem toda a vida serviu, o que, diga-se, só abona a seu favor.

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