Todos os meus amigos sabem que sou uma pessoa bemeducada. Um indivíduo inconstante. Inconsequente. Que passa a vida a cair. A cair cada vez mais para cima. Eles sabem também que sou um homem decente, incapaz de pronunciar bojardas. Mas também sabem que sou imprevisível, do tipo alguém que não tem medo. De nada. E, na verdade, não tenho medo de nada, nem das sombras geladas da morte.
Nesse dia acabava de estar com um amigo vinte anos mais novo que eu, cuja vida é dissertar sobre leis porque fez Direito e eu nunca me sentei numa cadeira da Faculdade, muito menos para estudar leis. Mas ele espanta-se com o meu nível de conversa nesta área a ponto de empregar termos usados em instâncias jurídicas, como se estivesse a dialogar com um colega seu e eu correspondo como se também estivesse investido pelo poder invulgar da Justiça.
Já passavam das 23 horas quando nos separámos, debaixo deste calor de Tete que não nos deixa descansar, e eu trazia na mão um livro: Mayombe, que o meu amigo me emprestara para reler, porque já havia lido esta obra do Pepetela nos meados de 1980, e lembro-me vagamente da contagiante história do comandante Sem Medo e do Volkswagem e dos nguetas.
Estava luar e eu ando em paz, tranquilo, sem pensar naquilo que me vai acontecer amanhã porque, se os pássaros não se preocupam com o que vão comer amanhã, porque é que eu, que sou superior a todos os pássaros, me vou preocupar!? Não tenho medo nem das cobras, nem dos tigres, porque eu sou uma águia e a águia não se preocupa com moscas.
Já quase a chegar à casa onde moro, sem vedação, vejo na porta algo estranho, escuro, que parecia da cor das trevas naquela noite de luar e eu não senti nenhuma reacção de medo, mesmo sem saber o que seria aquilo ali, exposto na horizontal como se fosse um caixão.
Não vacilei, eu não vacilo, sou como a voz de Nat King Cole. Convoquei todas as minhas energias espirituais e continuei a avançar, para ver de perto o que estava sendo exposto diante de mim: era um caixão, coberto de pano preto, enorme, capaz de albergar um cadáver humano de dois metros. Não fiquei espantado por não sentir medo porque pensei: se Deus está para mim, quem pode estar contra mim?
Apeteceu-me fumar um cigarro mas não tinha e o caixão está atravessado à porta e, para eu abri-la tenho que transpor esta macabra encomenda, como se saltam as barreiras de atletismo, mas sem aquele esforço. Saltei, abri a porta e entrei e depois fechei-a. Sentei-me na minha cadeira de plástico à espera de qualquer sinal e… nada! Pensei em pedir socorro, porém logo desisti do gesto. E disse assim, de mim para mim: raios que partam este caixão e a quem o deixou aqui.
Dormi como uma criança e, quando me levantei de manhã, havia uma enchente de pessoas que contemplavam o insólito em silêncio. “O que é que se passa, vizinho?”
– Eu também não sei, quando voltei ontem à noite este caixão já estava aqui!
– Porquê que não nos acordou?
– Não vos quis incomodar.
Uma senhora que estava ali sugeriu que se abrisse o baú e verifi cou-se que lá dentro não tinha nada.
– Vizinho, cuidado, este caixão é para ti, mas nós vamos tirá-lo daqui!