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Viver de corpo e alma

Viver de corpo e alma

Quantas histórias cabem dentro de um filme? Em “De Corpo e Alma” três histórias distintas e, ao mesmo tempo, semelhantes cruzam-se formando um enredo extraordinariamente comovente e tocante. É, aliás, uma lição de vida dada pelos portadores de deficiência física.

Em “De Corpo e Alma”, a primeira longa-metragem de Matthieu Bron, de 34 anos de idade, os actores sociais fazem calar quem os julgava incapazes de sozinhos levarem uma vida, diga-se, normal como qualquer outro ser humano, apesar de serem portadores de defi ciência física.

O filme, com uma duração de 56 minutos, é uma obra de arte irrigada de humanismo, cujo ritmo e a forma apelam à meditação, e não só. Também é um filme de representação social de um conteúdo importante e rico de histórias que não podem ser esquecidas. Pois, não se trata apenas das histórias de vida dos defi cientes físicos, mas também da relação entre estes e a sociedade no quotidiano.

No centro da história, dinâmica e densa de dramatismo que não deixa os espectadores indiferentes, temos três jovens: Vitória, Mariana e Vasco cujas histórias se entrelaçam e que partilham a mesma visão do mundo, angústia e, em momento algum, olham para si mesmos como inválidos.

Vitória, de 31 anos de idade, é mãe e estudante de francês na Universidade Eduardo Mondlane que, apesar de não dispor de um dos membros superiores, não se deixou ficar por isso. O seu dia-a-dia é igual à de qualquer outra mulher: faz as tarefas domésticas, cuida da sua filha, vai à faculdade e ainda arranja tempo para se dedicar à dança contemporânea.

Estudante na Escola Secundária Josina Machel, Mariana, de 22 anos de idade, é uma jovem que vive sem os dois membros inferiores, mas nem por isso deixa de sorrir para a vida. Vivendo na casa dos seus pais, Mariana leva uma vida igual à de qualquer outra jovem da sua idade: cuida de si mesma, gosta de sair com os amigos para se divertir e dedica-se também à dança contemporânea.

Já Vasco, de 24 anos, mora na casa do seu irmão. É também um dos jovens que descobriu que o facto de ter nascido defi ciente físico tal não o torna menos ser humano do que os outros. Vasco ganha a vida consertado sapatos e vendendo acessórios de telemóvel, negócio que conseguiu com sacrifício e faz com empenho e dedicação. Nos tempos livres, gosta de assistir a uma partida de futebol e dedica-se à dança contemporânea.

Os protagonistas do “De Corpo e Alma” são jovens que, embora diferentes, optaram por olhar para o lado positivo da vida e querem ser vistos como qualquer outra pessoa que tem sentimentos, desejos, necessidades, vontades e regras. Mas o maior dilema tem sido provar a uma sociedade preconceituosa que, embora defi cientes físicos, não são diferentes dos outros.

Os personagens falam do seu dia-a-dia, da sua alegria, dos seus sonhos, mas nunca comentam sobre as suas dificuldades. Aliás, falam das suas angústias: serem considerados incapazes e olhados como mendigos. Diga-se, o seu quotidiano é pautado por episódios curiosos – leia-se, embaraçosos – desde conseguir um lugar no chapa até aos comentários e questões preconceituosos como: “Quem teve a coragem de manter relação uma sexual com ela ao ponto de engravidála? Afinal, tomas banho sozinha? Como é que se veste?”.

A ideia do documentário nasceu em 2007 num encontro com a Companhia Moçambicana de Dança Contemporânea na qual participaram jovens portadores de deficiência física e o referido trabalho levou três anos a ser produzido. “A ideia é trazer os desafi os físicos e psicológicos desses jovens”, diz Bron.

Inicialmente estava previsto que os protagonistas fossem seis actores sociais, mas, devido à complexidade na construção de uma história composta por aquele número de personagens aliada ao custo de produção, optou-se por escolher apenas três. “As histórias de vida, o carácter e o espírito de luta foram aspectos importantes na escolha dos três jovens”, explica o realizador.

O “De Corpo e Alma” não é uma soma de clichés sobre o drama de se ser um portador de deficiência, nem uma crítica à atitude preconceituosa de uma sociedade, e muito menos um filme no qual os actores sociais são reduzidos a estereótipos ou vítimas de discriminação desenfreada. Pelo contrário, o documentário é uma construção elaborada, do ponto de vista artístico, que dá voltas a esses lugares comuns.

O filme, que foi exibido pela primeira vez na quinta edição do Festival Internacional de Filmes Documentários (Dockanema), traz numa linguagem cinematográfi ca a realidade tal como ela é, mostrando à sociedade as qualidades dos deficientes físicos como seres humanos.

Talvez seja um dos mais humanos, verdadeiros, dramáticos e obrigatórios filmes que alguma vez se fizeram, pois tem uma dose de humanidade plácida que nos é transmitida como uma lição de vida. E quando o filme chega ao fim, ficamos deslumbrados, devido ao resultado hipnótico, e com a sensação de sabedoria.

Para Matthieu Bron, este foi o meio que encontrou para transmitir a realidade e criar uma ponte com vários pontos geográfi cos. “Queremos levar este filme às pessoas que não podem pagar um bilhete numa sala de cinema”, comenta.

O “De Corpo e Alma” será projectado com o apoio da embaixada da Espanha em Moçambique em alguns bairros periféricos. Este fim-de-semana, 23 do mês corrente, o filme irá ser apresentado em Matendene. No dia 30, caberá a vez ao bairro do Chamanculo e nos dias 5 e 6 de Novembro a projecção ocorrerá na Mafalala e Polana Caniço, respectivamente.

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