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Nelson Mandela em estado puro

Nelson Mandela em estado puro

Ninguém é um santo. Nem mesmo Mandela. É ele que o diz em Conversations with Myself, lançado mundialmente na passada quarta-feira – em português estará disponível no dia 8 de Novembro, sob a chancela da editora portuguesa Objectiva com o título Arquivo Íntimo. Um livro que é em tudo a sua voz, o seu pensamento, o seu retrato mais puro. E no fim, o seu momento de redenção. “Dignidade por fora, dignidade por dentro”, diz o historiador Tim Couzens. 

Em quase tudo, Nelson Mandela é contido. Sobretudo quando é ele quem está no centro das atenções, como agora, na apresentação do seu novo livro. Conversations with Myself lançado na passada quarta-feira (13) em todo o mundo (20 línguas, 23 países) com prefácio do Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama.

Nelson Mandela, de 92 anos, consegue ser quase impessoal na forma como descreve aquele que é o seu livro mais íntimo. Nele revela documentos inéditos, cartas da prisão, enviadas ou retidas pela censura, notas em diários e calendários em que conta sonhos, expõe pensamentos pessoais e reflexões políticas, apontamentos que mostram o que carrega um Presidente “antes de o ser” de uma nação em convulsão.

“(Estes) arquivos contêm vestígios da minha vida e a daqueles que comigo viveram. Qualquer pessoa que tenha explorado o mundo dos arquivos saberá que encerra tesouros, surpresas, caminhos cruzados, becos sem saída, lembretes dolorosos e perguntas sem resposta”, escreve o ex-Presidente sul-africano e ícone da luta contra o apartheid numa pequena síntese de apresentação do livro.

Nunca neutro, mas objectivo e justo, mesmo quando à frente tinha opositores. Soube encontrar em campo inimigo homens moderados e bons. Ponderado e contido, apesar de usar a arrogância, enquanto jovem, para esconder fraquezas, como ele próprio descreve.

Delicado na forma, firme nos princípios. Lutador. Características que já transpareciam na autobiografia Longo Caminho para a Liberdade. Agora, com Conversations with Myself, são mais evidentes. E profundo. No fim, foi pela palavra que venceu. E é pela palavra que se redime.

E se, neste livro, Mandela for o mais verdadeiro e transparente que alguma vez poderá ser, confirma-se o seu lado humano, contido e ponderado. Têlo-á sido mais na última fase da vida. E mesmo em jovem, quando defendeu a luta armada – e a violência com o mínimo de vítimas entre civis, mas apesar de tudo a violência – como única forma de vencer o regime do apartheid. “Os meios que são utilizados pelos oprimidos para avançar com a sua luta são determinados pelo próprio opressor. […] Se o opressor recorre à força, o oprimido retaliará recorrendo também à força. Era esse o meu argumento. […] Esta é uma lição da história, ao longo dos séculos e… em qualquer parte do mundo.”

Em conversa sobre a autobiografia Longo Caminho para a Liberdade, com o escritor-fantasma Richard Stengel Em 1998, Nelson Mandela vivia os últimos meses como Presidente da África do Sul, fechava um capítulo da sua vida, abria outro. Tinha então 80 anos. Casava com a ex-primeira-dama de Moçambique Graça Machel e redigia o rascunho inacabado do primeiro capítulo da segunda autobiografia, sequela nunca publicada de Longo Caminho para a Liberdade.

Embora considere muito difícil, “quase impossível”, fazer uma escolha, Verne Harris, director do Centro de Memória e Diálogo da Fundação Nelson Mandela, elege esse rascunho como a passagem, neste livro, mais relevante para perceber a personalidade de Mandela.

É também essa que o historiador e escritor sul-africano Tim Couzens, que participou na investigação e selecção dos arquivos a publicar, juntamente com a equipa do Centro de Memória, escolhe como a mais importante do ponto de vista histórico, de “significado seminal” e por isso escolhida como aquela que fecha o livro. “[Quando começou a escrever esse capítulo, em 1998, ainda como Presidente], já estava consciente da ganância e corrupção crescentes que ameaçavam os ideais da sociedade que ele estava a tentar construir”, diz Tim Couzens numa entrevista por email, sem saber que esta passagem também foi a escolha de Verne Harris quando questionado sobre o registo que mais revelava o íntimo de Mandela.

“É uma visão muito pessoal. Este é, para mim, o registo que oferece um olhar mais fresco sobre Nelson Mandela. O que é tão significativo, a meu ver, é que Mandela manifesta desconforto com o conceito de autobiografia.

Quando fala do terrível peso que sente, de um fardo, refere-se à autobiografia e ao seu estatuto de ícone”, explica Verne Harris numa entrevista ao “Público”, por telefone. “Ele começa a falar das suas fraquezas, desse tempo em que era mais novo e em que usava a arrogância para as ultrapassar.

E isso é, a meu ver, muito profundo porque, tratando-se de um ser humano que realizou tanto na sua vida, está, aos 80 anos, quando escreveu esse rascunho, a expressar esse sentimento de ser falível, uma pessoa que cometeu erros e que quer agora encontrar uma maneira de escrever e tornar isso público.” 

“Quando era jovem… reunia em mim todas as fraquezas, todos os erros e faltas de discrição de um rapaz do campo […]. Confiei na arrogância como forma de esconder as minhas fraquezas. […] Uma questão que me preocupava seriamente na prisão era a falsa imagem que eu, sem qualquer intenção, projectava para o mundo exterior; a de ser encarado como um santo. Nunca fui um santo, nem mesmo na acepção terrena de um santo como um pecador que não cessa de se esforçar.” Rascunho do primeiro capítulo Os Anos Presidenciais da sequela nunca publicada da autobiografia (16.10.1998).

Mais de 20 anos depois de escrever essas linhas, Mandela vê-as publicadas. “Penso que o material que recolhemos e juntámos como um conjunto permite-lhe fazer, através do Centro da Memória e do Diálogo, o que ele queria fazer naquela altura [em 1998, quando redigiu o rascunho]”, continua Verne Harris. É então, nesse sentido, um livro muito importante para Mandela? Aquele em que se mostra e ao mesmo tempo se redime? Harris sintetiza: “É um livro arriscado para o seu legado.”

O prefácio é do Presidente Barack Obama, por sugestão do embaixador dos Estados Unidos na África do Sul, Donald Gips, que, já na fase final do trabalho, visitou o Centro da Memória. Na sala dos arquivos, Gips viu os diários, os cadernos de apontamentos, e “emocionou-se muito com essa experiência”, conta Harris. “Perguntou-nos se nos importávamos que falasse ao Presidente Obama para escrever um prefácio. Não acreditámos que isso alguma vez acontecesse.” Aconteceu. “Ficámos muito surpreendidos.”

“Como todos nós, [Mandela] também tem as suas falhas. Mas são precisamente essas imperfeições que deverão inspirar todos e cada um de nós. […] Todos nós travamos batalhas grandes e pequenas, pessoais e políticas – para ultrapassar o medo e as dúvidas […].” Do prefácio de Barack Obama

Na altura sem título, Conversations with Myself começou a germinar em 2004, quando o ex-Presidente doou ao Centro de Memória e Diálogo da Fundação Mandela o seu arquivo pessoal. “Ao fim de 12 meses a consultar estes documentos, tomámos consciência de que havia um livro ali. Porque estes registos oferecem uma visão única de Nelson Mandela, do ser humano por trás da figura pública. É um Nelson Mandela que é falível, subtil, evasivo”, explica. “O que queríamos era partilhar este Mandela com o mundo.”

O Centro de Memória expôs ao ex-Presidente a sugestão de reunir em livro estes arquivos nunca editados. Ele concordou. “Abençoou o projecto, mas não quis estar envolvido pessoalmente. E não colocou quaisquer restrições ao nosso trabalho. Deu-nos a liberdade para vermos tudo e seleccionarmos o que queríamos”, salienta Harris.

Em 1999, depois de deixar a presidência, confirmando a opção de não se candidatar a um segundo mandato, Nelson Mandela criou a fundação que tem como missão continuar a apoiar causas sociais e humanitárias, como a luta contra a SIDA. Integrado na fundação, o Centro de Memória e Diálogo dá a conhecer ao mundo informação sobre a vida e a época de Mandela.

Nesse centro, está a maior parte dos seus arquivos. São caixas e caixas em prateleiras cheias de papéis. Alguns registos “perderam- se pelo caminho”, lê-se na introdução do livro. “Alguns foram confiscados pelo Estado, outros foram destruídos ou usados como prova.

O arquivo privado de Mandela é hoje um arquivo disperso e fragmentário.” O que não está no Centro de Memória, está nos Arquivos Nacionais da África do Sul e na National Intelligence Agency (serviços secretos), entre outros. Alguns registos estão nas mãos de privados.

Por sorte a equipa de Verne Harris encontrou, nos últimos meses de investigação, o arquivo mantido pelo antigo guarda prisional Jack Swart, que acompanhou Mandela durante os 14 meses que antecederam a sua libertação, na prisão de Victor Verster, quando Mandela passou a estar instalado numa vivenda espaçosa, em 1988, já depois de iniciadas as negociações secretas com o Governo sul-africano.

Antes, no regresso de uma estadia no hospital, fora colocado numa cela sozinho na prisão de Pollsmoor, em 1985, aproveitando para iniciar contactos com o Governo e para negociar as condições para a sua libertação, que passavam, entre outras coisas, pela libertação dos outros presos políticos e pelo fim da proibição do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla inglesa, o partido de Mandela).

A propósito da opção política de iniciar conversações, escreve Mandela, já em 1998: “O ANC nunca se afastou do princípio de que a libertação do nosso país acabaria por se tornar uma realidade através do diálogo e da negociação. No entanto, iniciei os contactos com o Governo sem dizer nada aos meus camaradas de prisão.” Sequela não publicada de Longo Caminho para a Liberdade

Conversations with Myself, que não é exclusivamente cronológico mas segue uma evolução aproximada dos acontecimentos, reúne cartas escritas da prisão – umas enviadas, outras que nunca chegaram ao destinatário por controlo das autoridades do apartheid – e rascunhos. Tem também excertos de um diário que Mandela escreveu em 1962, já na clandestinidade, quando saiu da África do Sul e viajou por vários países africanos e Londres.

Nesse périplo, inspira-se das formas de luta na Argélia, recebe garantias de apoio em países como a Libéria e lê várias obras sobre guerrilha, enquanto molda e reflecte sobre o ideal político pelo qual iniciava uma luta. Para ele, era fundamental dar um sentido à luta armada, ligando-a a um ideal político. Noutros momentos, cita outras obras, as preferências pelos clássicos gregos como Antígona, ou outras referências como Guerra e Paz de Tolstoi.

No Egipto, interessou-se “por uma questão da maior importância para os pensadores africanos”, ou seja, “em recolher provas científicas para desmontar a pretensão fictícia propagandeada pelos brancos de que a civilização teve início na Europa e que os africanos não possuem um passado tão rico como o deles”.

Com Richard Stengel, fala também do encontro na Etiópia com o imperador Hailé Selassié, e sobre uma cerimónia de entrega de distinções a militares americanos e outros estrangeiros diz: “Ver brancos a dirigirem-se a um monarca imperador negro e a fazerem vénias foi também muito interessante.”

Uma observação que vai ao encontro da própria génese da luta anti-apartheid. E que lembra outra: quando questionado por Richard Stengel sobre se ainda existe na sua geração “alguma espécie de deferência perante o homem branco”, Mandela corrige o termo e diz que não pensa que haja um sentimento de “inferioridade [do negro] em relação ao homem branco”.

Porque era disso que se tratava antes da Campanha de Desobediência de 1952, em que um dos objectivos era “incutir este espírito de resistência à opressão: não temer o homem branco, o polícia, as suas prisões, os seus tribunais…”.

A propósito daqueles de quem discordava, Mandela defende que “as críticas devem ser dignificantes”. E mesmo sobre aqueles cujas ideias não aprecia, diz ser importante respeitar a sua reputação, na forma como a eles se refere na autobiografia.

Isso sobressai em algumas conversas com o escritor-fantasma Richard Stengel ou com o amigo Ahmed Kathrada – como aquela em que recusa referir-se aos outros presos (não políticos) da penitenciária de Robben Island como “criminosos”, mais uma vez corrigindo o seu interlocutor para que a eles se refira como “presos de delito comum”.

Esta preocupação com o outro, seja ele quem for, leva o historiador Tim Couzens a dizer: “Embora haja laivos de ira e dor profunda nos seus escritos pessoais, esses momentos são sempre contidos e controlados. Dignidade por fora. Dignidade por dentro.”

Nas 70 horas de conversas gravadas (e transcritas) de Mandela com Richard Stengel e com o seu amigo e companheiro de prisão Ahmed Kathrada, as emoções e reflexões mais pessoais completam os pensamentos mais políticos na cronologia de eventos já conhecida da autobiografia.

“Neste novo livro é um Nelson Mandela que está a falar com ele próprio. Não está a trabalhar ou a escrever especificamente para uma audiência. Há uma intimidade aqui que não havia na autobiografia”, nota Verne Harris.

“A autobiografia é uma construção, o produto de uma escrita a várias mãos. A voz narrativa autobiográfica é uniforme, monótona, pública. Os registos pessoais e as conversas dão-nos ideia de como ele fala, os seus maneirismos, o seu humor, humanizam-no”, acrescenta Tim Couzens.

A completar os registos, há ainda os blocos de notas nos meses antes de ser eleito Presidente (1994-1999), tomado pelos acontecimentos violentos no país e o receio de ver fracassar o processo de paz. “A nossa força reside na disciplina. Direito a manifestações pacíficas. […] Nada de vinganças.”

Bloco de notas

Nos apontamentos de calendário, que manteve nos últimos 15 anos em que esteve preso, Mandela anotava diariamente ou semanalmente pormenores do quotidiano na prisão.

Hoje, poderia ser um blogue. Nos anos 1980, eram registos escritos à mão com as mais variadas observações e apontamentos, entradas telegráficas mas reveladoras das condições na prisão, que nitidamente melhoravam com o passar do tempo: lembretes, apontamentos das consultas e do diagnóstico feito pelos médicos, da medição da sua cela (6,4 metros por 5,4 metros), anotações dos dias de aniversário e das visitas frequentes das filhas Zeni e Zindzi, e de Winnie Mandela (a quem chamava Zami), da morte de Samora Machel, a 19 de Outubro de 1986, das reuniões “importantíssimas” com o ministro [da Justiça] K. C. [Kobie Coetsee], a quem Mandela escreveu em 1985 para iniciar pré-negociações, e mais tarde do encontro de quase três horas que teve com o Presidente Frederik de Klerk, dois meses antes de ser libertado. E ainda registos de receios e sonhos.

“Sonho que regresso a casa à noite, quase ao amanhecer. […] Sonho com a Zami, a Zeni e a Zindzi. A Zeni tem cerca de dois anos. A Zindzi pede-me para a beijar e queixa-se de que eu não sou suficientemente caloroso. A Zeni pede-me que a beije também.” Notas no calendário com entradas de 23 e 25 de Maio de 1980

Em 1980, faltavam dez anos para ser libertado. Sem certezas de que um dia viesse a sê-lo. No tribunal, durante o julgamento de Rivonia, em 1964, acusado com outros 18 membros do ANC de traição, Mandela enfrentara a possibilidade de uma condenação à morte. A ela escapara, mas não à prisão perpétua (pós Rivonia, Mandela acabou por estar preso entre 1964-1990).

Sobre a possibilidade de passar o resto da sua vida na prisão, sem o amor de uma mulher, como lhe pergunta numa conversa Richard Stengel, Mandela diz: “Essa era uma questão que eu tinha que varrer da minha mente. […] É suficiente que seja uma mulher que me seja leal, que me apoie e me venha visitar, que me escreva. Isso é suficiente.”

Não é claro quando se dá a ruptura com Winnie Mandela, com quem casara em 1958. Sobre a separação, o líder sulafricano é lacónico, como antes o fora sobre as circunstâncias do divórcio com a primeira mulher, Evelyn Mase, de quem teve quatro filhos, dois dos quais morreram – Makziwe com apenas nove meses e o filho mais velho, Thembelike – num desastre de carro, quando Mandela está na prisão, em 1969, meses depois da morte da mãe.

Mandela revela essas feridas abertas como “experiências [que] destroem profundamente todo o nosso ser, até à alma”.

“Devo ter ouvido mil e uma vezes que o que importa não é tanto o que acontece a uma pessoa, mas sobretudo a forma como essa pessoa aceita o que lhe acontece. […] No entanto, sempre que é a minha vez de ser atingido por alguma infelicidade, são precisamente estas coisas simples que eu esqueço, e deixo assim que o caos se instale.” Excerto de uma carta a Tim Maharaj, mulher do activista anti-apartheid também preso, Mac Maharaj

Graça Machel, com quem Mandela viria a casar em 1998, começa por surgir nestes registos em excertos de cartas e apontamentos (entre 1992 e 1993) em que o próprio a descreve como “muito correcta, discreta e compreensiva”, nos encontros que com ela teve em Joanesburgo, e “completamente diferente, firme e cheia de autoridade, embora cortês e encantadora”, quando a viu em Maputo.

Nas cartas, Mandela partilha com a futura mulher preocupações relativas à situação política de outros países africanos ou responde aos conselhos que a própria Graça Machel lhe dá. A correspondência é aqui apresentada em forma de rascunho, cartas que podem ou não ter sido enviadas, incluindo aquela que, em 1992, Mandela termina dizendo: “Penso em ti.”

Dois acontecimentos ligados à forma de luta tinham anos antes contribuído para afastar Nelson e Winnie Mandela, mas os dois viveram um grande amor, expresso nestes escritos pessoais.

Antes desse momento, Winnie está muito presente, nas visitas à prisão e nas cartas que Mandela lhe envia a ela e às filhas. É através dela que Mandela revela o seu lado mais emotivo, em cartas muitas vezes lidas por outras pessoas (os guardas e os censores). É a ela que escreve, em 1975, quando Winnie também se encontra presa, em Kroonstad: “Não devemos esquecer que um santo é um pecador que não cessa de se esforçar.” Esta é a frase que fica, neste livro, como principal mensagem de uma vida.

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