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24 anos de solidão

24 anos de solidão

 Amone Fumo não viveu a juventude. Contava 19 anos de idade quando a demência lhe roubou os sonhos e o futuro. Na memória, apenas a lembrança do cargo de fi el de armazém. Esta foi, em parte, a triste sina de um homem solitário que (sobre)viveu 24 anos deslocado do mundo social…

Sem memória suficiente, Amone tem uma vaga ideia das causas e de como foi passar 24 anos apartado do mundo, em péssimas condições de vida, sobretudo sem tomar banho, a usar os mesmos cobertores e sem degustar uma alimentação condigna.

As pessoas mais chegadas contam que a sua vida, qual um eremita, se resumia entre uma cabana para dormir e um espaço improvisado onde fazia uma lareira para se aquecer nos dias mais frios. “Nesse lugar nunca houve luz, água e casa de banho.

Com o tempo e a falta de cuidados vieram-lhe as barbas, as rugas, as unhas e o cabelo comprido, bem como um cheiro fétido que emanava do seu corpo imundo”, dizem.

Tal como o seu aspecto, o enorme terreno adquirido quando gozava de boa saúde mental, transformou-se num matagal sinistro e medonho.

Ninguém se atrevia a pôr lá os pés, os vizinhos afastavam-se dele como se fugissem de um animal feroz, apenas a mãe que, movida pelo incansável instinto materno, se arriscava a entrar para lhe dar alimentos, mas mesmo assim não ficava por mais de um minuto.“Entrava, deixava a comida no pátio e logo saia às pressas”, contam.

Era arriscado aproximar-se dele. Via as pessoas como bichos para abater e, para tal, coleccionava uma série de instrumentos cortantes, prontos para executar a acção. Citando a mãe, testemunhas contam que “esta história vem desde 1986.

Nessa data, como todas outras, o dia acordou bem. Ele foi trabalhar, mas, estando na empresa, começou por se sentir mal e de repente entrou num cubículo onde permaneceu por lá trancado 24 horas. Quando saiu foi directo à casa e começou a sofrer perturbações mentais, pelo que nunca mais voltou ao trabalho.

Sobre a empresa e os colegas nada se diz. Mas há indicações de que trabalhava numa fi rma estatal e que, mais tarde, veio a ser privatizada”, conta Hermínia Mavume, activista da Associação Vangani Va Infulene (amigos de infulune, em português) que lida directamente com o caso. De lá para cá ninguém sabe dizer com certeza o que terá acontecido.

Na busca infi nita por explicações, o povo adianta várias hipóteses, sobressaindo as que apontam para questões supersticiosas como a raiz do problema, bem como a possibilidade de Amone não ter conseguido gerir uma crise, se calhar resultante de alguma pressão, quer no seu posto de trabalho, quer por desentendimentos com algum companheiro.

“Pode ser que se tenha envolvido em desavenças e não soube controlar o stress, afinal era um jovem e tinha apenas uns 19 anos”, comentou um vizinho.

O tratamento Para chegar ao hospital psiquiátrico, benefi ciou da ajuda de uma associação local, sedeada na Igreja Nossa Senhora do Amparo. Segundo as palavras de Hermínia Mavume, numa primeira fase a agremiação estava à procura de doentes com SIDA e à medida que foi percorrendo o bairro descobriu a triste história deste homem de 53 anos.

“Ficámos sensibilizados e decidimos ajudar. Foi um caso muito difícil porque ninguém entrava naquele quintal. A primeira vez que viemos, os vizinhos impediram-nos alegando que corríamos o risco de perder a vida, pois o dono do lugar era perigoso”, conta.

A muito custo, a 15 de Janeiro deste ano, Amone deixou pela primeira vez a sua casa e partiu para o Hospital Central em busca de ajuda médica. “Não foi fácil tirá-lo de casa. Nem os vizinhos com a ajuda de três polícias, dos quais um armado, foram sufi cientes para arrastá-lo. Além de forte, ele tinha sempre à mão os seus instrumentos contundentes, era uma espécie de autodefesa”.

Para o imobilizar foi preciso a intervenção de Jó, um homem mais afeiçoado a ele e que se presume seja um amigo de longa data. “Jó tratou de o acalmar, segurar os braços e com ajuda dos polícias levaram-no à ambulância, que já estava pronta e lhe foi aplicada uma injecção tranquilizante”.

Na maior unidade sanitária do país deu entrada numa sexta-feira e três dias depois foi transferido para o Hospital Psiquiátrico de Infulene, onde ficou em tratamento durante sete meses. Novamente em casa Volvidos sete meses sob os cuidados médicos no maior centro de tratamento de doentes mentais do país, em Agosto regressou a casa de onde passou a receber a medicação de forma ambulatória.

Apesar de se apresentar fraco, sente-se melhor. “Tem apenas fraqueza, mas deve ser porque não se alimenta bem enquanto toma os medicamentos”, explica Hermínia. Hoje Pouco passa das 10 horas, de uma quinta-feira qualquer, Amone está sentado num banco de madeira. Numa mão segura um pão e noutra um copo de chá.

Quando nos viu tratou de servir o banco e o pouco que comia. Entre conversas e desabafos falou sobre as suas dificuldades. Neste momento o que mais o apoquenta é a falta de alimentação adequada. Para comer depende do que a mãe consegue arranjar na rua e, às vezes, aparecem algumas pessoas que oferecem algo.

Filho único de uma viúva de 80 anos, o pai morreu há muito tempo. Não tem fi lhos e nunca se casou. Há 25 anos, ainda não contava vinte, já estava a iniciar uma obra num terreno de 15 por 30 metros.

Era uma casa com 12 por 12 metros, na interior composta por uma enorme sala de estar, três quartos, casa de banho e cozinha, tudo obedecendo aos padrões exigidos para uma habitação ideal, desde a fundação às vigas. O objectivo era fazer um telhado de placa. Depois de tudo ponderava erguer o muro e uma dependência e levar uma vida normal.

Até onde o empreendimento parou, todas as condições estavam garantidas para uma conclusão sem sobressaltos. Havia material e verbas necessárias. Todavia, tudo, a começar pela pessoa, a juventude, os sonhos e os projectos por concretizar, a demência levou.

Com o tempo e aproveitando-se da sua condição mental, as pessoas foram roubando a areia, as pedras e os tijolos que estavam acumulados no pátio.

Actualmente tenta a pouco e pouco encontrar o norte da vida. Segundo o pessoal que o acompanham no dia-a-dia, à medida que recupera com os diversos tratamentos, será submetido a pequenas actividades para resgatar a sua memória.

Alguns especialistas adiantam que Amone pode vir a recuperar por completo os detalhes sobre a sua vida. “Pelos actos e a forma como reage a alguns estímulos nota-se que a sua compensação não está longe, mas o maior problema será encontrar alguma integração social, tal como um emprego e a constituição de uma família.

Infelizmente a sociedade tem discriminado pessoas que já passaram por problemas mentais”, comentam Dada a condição de pobreza extrema em que ele e a mãe (idosa de oitenta anos) vivem, o seu caso foi submetido às entidades dos serviços de acção social.

Contudo, em virtude da burocracia que caracteriza a tomada de decisões no país, os dois continuam à espera de respostas cabais.

E enquanto dias melhores tardam em chegar, a sua rotina resume-se entre a casa e ida à Paróquia da Nossa Senhora do Amparo. É lá onde encontra a paz de espírito.

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