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Bitonga Blues: Seu cão!

A última vez que senti um cheiro horrível de verdade foi quando uma mulher leprosa se sentou a meu lado, no “chapa”, na cidade de Maputo, encostando-me até sentir a fragrância das suas feridas na minha pele sem que eu pudesse fazer fosse o que fosse.

Aquilo era o cheiro do diabo, numa manhã de um dia sem registo, em que a lembrança mais importante será o tremendo odor aspergido até às minhas entranhas por uma mulher que depois vim a saber tratar-se de alguém que ainda por cima fora minha namorada em tempos. Mas tudo isso já tinha passado e eu também já tinha regressado aos meus desfi ladeiros, naturais e inventados por mim.

Hoje volto a encontrar-me com o diabo, ou seja, o diabo volta a ter comigo na esplanada do “Why not” na cidade de Tete, onde estou sentado a viajar nas minhas lucubrações, sozinho, esperando alguém que não será este personagem monstruoso que se dirige, determinado, à minha mesa.

Não tenho nada no tampo a não ser esta garrafa plástica de água que vou bebendo devagar à espera da pessoa com quem tinha combinado no dia anterior. Sinto o espírito e a alma a levitarem no espaço sideral, em paz e, quando é assim, normalmente tudo o resto vai correr bem comigo, mesmo que o diabo se meta na linha que me orienta.

Ele vem. Resoluto. Flagela-me com os olhos e com o corpo. Enorme. Parece um demente, que não toma banho. Tem o cabelo desgrenhado. A barba está cheia de sobras de farinha de milho, provavelmente preparada em alguidares sagrados e cozida em panelas também sagradas e está a mastigar um osso que range sonoramente como se estivesse a ser triturado na bocarra de um crocodilo. Abre e fecha a boca e está constantemente a passar a mão por sobre os cabelos tingidos de castanho pelo tempo e avança para a mesa onde estou sentado.

Não tenho medo dele, mesmo sentindo o receio de que me pode tocar com aquelas manápulas de Drácola. Reparo agora – que ele já está sentado à minha mesa, sem autorização da minha parte – que tem os olhos pequenos. Noto ainda que o louco traz mais ossos nos bolsos, que vai tirando para os mastigar com dentes fortes iguais aos da hiena, este animal fedorento que tem a dentadura mais tenaz da selva. Aliás, não haveria nada no mato com capacidade de superar este mamífero carnívoro se não fosse a descompensação que tem nas patas traseiras, porque os dentes que possui são de aço.

É isso: o personagem pegou na minha garrafa de água e virou-a num trago. Vergastou-me com o olhar e bramiu:

– Não pagas uma cerveja?

A voz tinha um sotaque dividido entre o sena e o changana. E o timbre, roufenho, trouxe-me à memória o João Paulo e o tempo em que este bluesman ronga impregnava as noites do “Gil Vicente”.

– Não tenho dinheiro.

– Como é que estás aqui sem dinheiro?

– Estou aqui!

O homem era repelente, com odor horrível como as hienas que nos vão arrancar os lábios superiores nas noites em que os tetenses dormirão fora por não suportarem o calor no interior das suas casas. Continuava a mastigar ruidosamente como os crocodilos os ossos que ele traz nos bolsos. E eu estou a lembrar-me da leprosa que se sentou ao meu lado no “chapa”, em Maputo, por causa do cheiro abominável desta fi gura desconhecida que está sentada à minha mesa.

– Está bem, seu pobre e desgraçado, não me queres pagar uma cerveja!?

– Não tenho dinheiro!

Ele levantou-se delicadamente, deu-me costas momentaneamente e logo a seguir virou-se para mim como o fazem os actores de televisão e cinema e disse-me uma palavra que nunca ninguém me havia dito antes.

– Manambwa! (Seu cão!).

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