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Vidas maltratadas

Vidas maltratadas

Maus tratos, acusação de feitiçaria, abandono e sem de acesso aos serviços sociais básicos constituem alguns dos mais recorrentes problemas que apoquentam os idosos quando o mundo celebra mais um dia internacional dedicado a esta camada populacional.

José Souto tem 80 anos de idade. De olhar penetrante, pele enrugada, cabelo branco, corpo debilitado e consumido pelo tempo, é o retrato de uma vida maltratada e o exemplo vivo da fragilidade humana refectida num idoso.

Está sentado a repousar num banquinho de madeira colocado na porta de uma cabana de caniço e zinco, algures no bairro da Mafalala, onde vive sob os cuidados de uma enteada, pois os filhos nem sequer se lembram de si. Mal consegue andar.Há um mês, viveu internado nos serviços de urologia do Hospital Central de Maputo (HCM), dilacerado por uma doença estranha e persistente que a pouco e pouco o está a matar.

Vovó Souto, como é conhecido por ali, ainda estava enfermo quando recebeu alta e uma guia para continuar com o tratamento de forma ambulatória, uma cruz que se prevê mais pesada ainda porque carece de assistência e acompanhamento adequado.

“Se me tivessem mantido no Hospital, a coisa seria outra, mas infelizmente mandaram retirar a mim e tantos outros idosos, alegando que aquela unidade sanitária não tinha mais condições para abrigar doentes como nós”, diz cabisbaixo.

Após ter a alta compulsiva, permaneceu abandonado no HCM durante 10 dias e mais tarde foi expulso, com uma pilha de comprimidos para tomar em casa. “Nenhum dos meus filhos me veio visitar. Penso que é por essas e outras razões que quando alguém morre é jogado na vala comum. Infelizmente nesta sociedade, um familiar tem valor quando ainda está no activo”, desabafa. Para sobreviver conta com o apoio da Associação Luta Contra a Pobreza, mas clama sempre por ajuda, pois precisa de cada vez mais.

João Tivane é cego e tem 58 anos. Nunca esteve internado numa enfermaria, mas já a frequentou bastante quando acabava de perder a vista. Vive de esmola nas ruas da cidade de Maputo e conhece de cor as crises que um mendigo passa para obter alguma ajuda.

Ao contrário do primeiro, Tivane mora com os filhos e conta com a sua ajuda todos dias para transpor as avenidas da capital em busca de sustento. Veio de Inhambane há mais de trinta anos e vive na zona periférica da Polana Caniço com a esposa e três filhos, sendo que o mais velho tem 25 anos e os outros contam 16 e sete, respectivamente.

No grande Maputo tem como ponto de peditório a zona da Av. Julius Nyerere onde chega às 8 horas da manhã e larga às 16 para libertar o filho que serve de guia que vai à escola no período nocturno. “Prefiro aqui porque deste lado é muito fácil encontrar pessoas com posses, que não se importam de dar uns 50 meticais a um idoso mendigo como eu”, garante.

Ainda assim, lamenta dizendo que a sociedade mudou. “Já não se fazem pessoas generosas. Tudo é diferente nos últimos dias. Ninguém olha para os necessitados e cada um luta por si. Talvez possa estar errado, mas acho que nunca como hoje a ganância esteve na ordem do dia”, desabafa. Enquanto sobrevive da esmola, que no máximo lhe garante pouco menos de 200 meticais por dia, acalenta o sonho de começar um negócio próprio.

“Se o Estado tivesse um sistema de segurança social eficaz, presumo que as coisas seriam normais. Neste momento gostaria de desenvolver pequenas actividades comerciais, mas não há dinheiro para tal. Estou farto desta vida. Já não tenho forças para lidar com isto. O tempo passa e passam também as habilidades e a paciência para suportar as correrias, as humilhações e todo o sofrimento que caracteriza a rotina pesada de um velho mendigo. Sofro também pelo meu filho que perde tempo comigo quando estaria a preparar as lições”, diz a terminar.

Vitória David tem 60 anos. É mais um dos rostos que engrossa a lista dos idosos que sobrevivem ao deus-dará. Começou por perder o marido e depois os fi lhos. O esposo porque morreu e os filhos por lhe terem abandonado. Dois vivem na África do Sul e um em Maputo. Há cinco anos que vive só, no bairro da Machava, com o auxílio de uma pensão de 100 meticais, que o Estado lhe dá.

Dos rebentos pouco ouve falar. Partiram alegando que é trabalhoso cuidar de si. “No princípio apenas uma, dos que estão na RSA me vinha visitar. Mas nos últimos dois anos nunca mais a vi. Um deles vive aqui na Matola, na zona de Malhampsene e, como os outros, também desapareceu”, afi rma.

Apesar da dor e da solidão a que se encontra votada, Vitória garante que tem conseguido remar contra a maré. “Tudo seria razoável se o Estado aumentasse a pensão que concede aos idosos. Definitivamente, os 100 meticais que recebemos nem sequer servem para minimizar os problemas”, diz acrescentando que as desavenças entre si e seus rebentos começaram logo após a morte do esposo há 10 anos.

O idoso no país

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), resultantes do último recenseamento da população (Censo 2007), aproximadamente um milhão de pessoas, ou seja, cinco porcento da população do país, tem idade superior a 55 anos, o que lhe confere o estatuto de idoso, apesar de a OMS, (Organização Mundial da Saúde) classificar cronologicamente como idosos as pessoas com mais de 65 anos de idade em países desenvolvidos e com mais de 60 em países em desenvolvimento.

Um dos maiores problemas que assolam esta população é a violência, cujo agravamento começa atingir contornos alarmantes, fazendo com que muitos deles desacreditem nas pessoas e instituições que deviam zelar por si.

Apesar de não haver números exactos sobre a situação, vários casos de maus tratos, dos quais acusações sobre feitiçaria, falta de acesso aos serviços sociais básicos, como saúde, educação e desigualdade do género, bem como difi culdades no acesso à herança no caso das viúvas, continuam a crescer no país, agravados pela escassez de centros de acolhimento.

Para pouco mais de um milhão de pessoas, o país possui apenas 24 centros entre públicos e privados e 23 comunitários onde os idosos realizam actividades recreativas. A este grupo falta igualmente uma pensão condigna. O valor de 100 meticais fornecido pelo Estado não cobre as despesas necessárias, não só por causa do elevado custo de vida que assola o país, mas também porque muitos idosos têm cada vez mais agregados familiares.

Quando foi criado nos princípios de 1990, o objectivo do subsídio para o idoso era minimizar o sofrimento desta camada social. Na altura decidiu-se que um dos critérios para se ter acesso aos valores passava pela apresentação de comprovativos sobre a condição em que o idoso vivia.

De lá para cá, o subsídio foi alterado por duas vezes, partindo de 36 para 70 meticais e deste para 100, valor que funciona há 10 anos. O seu aumento acompanharia a revisão anual do salário e estava calculado em um terço.

Contudo, por causa das dificuldades do país, segundo o Director Nacional de Acção Social, Miguel Maússe, estes propósitos nunca foram materializados porque o processo depende inteiramente do desempenho da economia nacional.

Com base nessas dificuldades e para tentar enganar a pobreza muitos idosos encontram alternativas na mendicidade. Só na cidade de Maputo 360 pessoas maioritariamente mulheres idosas, vivem de rua em rua com a mão estendida.

Muitas vezes os algozes para os idosos são os próprios familiares, que chegam a exercer a violência sobre eles através de abusos sexuais e psicológicos, negligência por abandono e violência física que acaba em mortes.

Tais situações, segundo fontes que lidam com a matéria, contribuem para a fragilização do seu desempenho enquanto actores do desenvolvimento social, tendo em conta que muitas vezes os idosos são responsáveis pela prestação de cuidados a pessoas vivendo com o HIV e SIDA ou crianças órfãs e vulneráveis.

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