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Sobreviver entre o caos e anarquia

Sobreviver entre o caos e anarquia

Enquanto a licença do município tarda em chegar, a vida em Xiquelene e o tráfego na Dona Alice não param. Ontem, hoje e amanhã Khamo-khamo e os seus colaboradores voltarão para combater o caos e a anarquia que teimam em manchar a convivência normal por ali. Xiquelene é de facto um espaço feito de histórias.

Numa paragem caótica situada nas entranhas do mercado, acompanhamos o quotidiano de alguns cidadãos exemplares cujo objectivo e luta se resumem à manutenção da paz e ordem no local. Organizam as longas filas para o transporte, impedem os encurtamentos de rota, combatem os desmandos e, de forma persistente, sonham e acreditam com uma praça melhor, uma espécie de heróis anónimos que dão o máximo em prol do bem-estar colectivo.

“A minha satisfação é sentir que faço algo para ajudar as pessoas”, comenta orgulhoso António Khamo-khamo, de 48 anos e pai de quatro filhos, é uma espécie de redentor. Nas horas de ponta, quando no auge do oportunismo, os transportadores tentam reinstalar o caos e a anarquia ele é que põe freio. Com a sua força de vontade alivia a dor dos outros e é respeitado pelos utentes.

Antes viveu na África do Sul onde, segundo as suas palavras, cultivou o hábito da organização. “Os sul-africanos são mais ordeiros e organizados. Lá as pessoas são atendidas com base na ordem de chegada”, comentou e prosseguiu: “o nosso caso é muito diferente. Aqui, além de compactuarem com actos ilícitos, às vezes são as próprias pessoas que incentivam a desordem e a corrupção. Vejo todos os dias nesta praça”.

Como profundo conhecedor, Khamo-khamo frequenta o local desde 1999, oito anos depois de a paragem começar a funcionar, em 1991. De lá para cá passa ali o tempo todo, como se de um posto de trabalho se tratasse. Através dele fi cámos a saber que a paragem movimenta pouco mais de 45 viaturas entre autocarros de 15 lugares e camionetas ligeiras de caixa aberta e muitas vezes tem sido o refúgio para viaturas danifi cadas, sobretudo as que já sofreram acidentes de viação.

“Tenho a lista de todos os carros desta via. Quando um automóvel estranho tenta infi ltrar- se deste lado, mandamos retirar. Infelizmente apesar dos esforços que travamos, a maior parte das nossas viaturas chega em bom estado, mas em pouco tempo se estragam por causa das péssimas condições da estrada. O pior é que há cada vez mais gente a depender deles”, explica.

Para continuar a lutar por um ambiente são, o homem conta com uma equipa de 12 colaboradores por dia, que são um a espécie de fiscais. “Estes são alguns dos rapazes que ajudam nas tarefas quando estou ausente”, afi rma apontando para cinco jovens robustos. “Aqui ao contrário de outras paragens, as regras são rígidas.

Qualquer tentativa de corrupção acaba em expulsão e o mesmo acontece com os transportadores que encurtam as rotas. Nas horas de ponta com a enorme procura, alguns fi scais são subornados pelos passageiros para facilitar um lugar nas fi las que geralmente atingem 100 pessoas. Portanto quando essas situações são descobertas, expulsamos o infractor e não há perdão possível para essas faltas”.

Além da praça, o homem diz ser presidente do conselho fi scal da ATROMAP (Associação dos Transportadores Rodoviários de Maputo) e proprietário de duas viaturas que operam noutras rotas. Escolheu trabalhar no terreno para viver na pele os problemas do povo. “Poderia muito bem fi car acomodado no sofá do meu escritório, mas prefi ro acompanhar de perto o que as pessoas passam”, garante.

Muito antes de despertar o interesse por Xiquelene, Khamo- Khamo já conhecia as maiores difi culdades que o local enfrenta e diz que além dos velhos dilemas de encurtamento de rotas e superlotações, o local tem conhecido cada vez mais novas crises como o frequente mau estado da estrada e a investida de polícias de protecção corruptos que andam por ali a extorquir os chapeiros.

“O que nos preocupa mais é o mau estado da estrada. Gostaríamos que de vez em quando o município mandasse uma máquina nivelar isto e nós pagaríamos, pelo menos, o combustível”, garante. Portanto, apesar de ser a principal via de acesso de milhares de pessoas, nenhum transportador está licenciado por ali. Segundo nos foi dado a conhecer, tal acontece porque o município alega que a estrada carece de condições de circulação.

Um lugar bastante frequentado

Apesar de ser uma rota frequentada por cidadãos de classe alta e alguns dirigentes do país quando pretendem rever os familiares e as propriedades (principalmente quintas) que estão ao longo daquela via, a estrada que parte de Xiquelene no distrito municipal Kamavota em Maputo, não é mais do que uma picada poeirenta e esburacada onde o caos e a anarquia são o principal modo de vida.

Homens, mulheres e crianças dos bairros das Mahotas, Chikhavele, Albasine, Mateque e o distrito de Marracuene, todos dias nas horas de ponta passam por um “teste de nervos” impróprio para cardíacos. Sob o olhar sereno das autoridades (já que, bem próximo à estrada funcionam dois postos policiais e uma procuradoria distrital), as regras são impostas pelos transportadores de semicolectivos dirigidos pelos respectivos cobradores cuja falta de respeito aos passageiros é a característica principal.

Segunda-feira, saindo das Mahotas para Xiquelene através da via Romão/Dona Alice, pouco passava das seis horas quando trinta minutos após cumprirmos uma fi la com pouco menos de 50 pessoas, apareceu o primeiro “chapa”, um Toyota Hiace totalmente degradado e com algumas peças a cair aos bocados. “Xiquelene, xiquelene. Dinheiro trocado e não aceitamos notas altas a partir de 50 meticais”, gritava o cobrador freneticamente enquanto o motorista, sorridente via os passageiros afl itos e aos cotovelos a entrarem na sua “lata ambulante”, desprovida de vidros, além de circular sem faróis e com assentos insufi – cientes.

No interior do carro, entre os gritos e reclamações, fomos conversando com os passageiros que desabafavam sobre a vida dura que signifi ca frequentar diariamente a Romão/Dona Alice. “Pelas suas perguntas e o espanto vejo que o senhor nunca andou por aqui”, questionou Manuel Agostinho, de 51 anos, residente das Mahotas e habitual utilizador da rota.

“Apanhar o transporte aqui é um problema sério, mas não temos escolha. Além de nos ‘ensardinharem’ nestas “latas velhas” e fazerem-nos sentir o peso dos encurtamentos desnecessários nas horas de ponta, estes carros são um constante perigo para nós. São viaturas que já deviam estar arrumadas, mas como isto se rege pela lei da selva, não há hipóteses”.

“Esta é a nossa rotina. Quando os autocarros de transporte semicolectivo faltam, viajamos em camionetas de caixa aberta, outro martírio por causa dos saltos que caracterizam a estrada do princípio ao fi m. Noutro dia ouvi através da televisão, o presidente do município a anunciar que o seu elenco iria reabilitar esta picada, mas hoje, ao que tudo indica, parece que se tratava de uma conversa para garantir votos”, comentou Silvério

Simão de 34 anos e trabalhador na baixa da cidade de Maputo. Simão prosseguiu nos seguintes termos: “Muitos dirigentes circulam por aqui, pois tem as suas quintas nestes bairros, contudo não levam o problema à sério porque fazem-se transportar em carros confortáveis com capacidade para reduzir o impacto dos saltos. Outro facto caricato é que, a polícia de protecção nunca falta nesta zona, mas não para manter a ordem e sim com o objectivo de extorquir estes chapeiros, visto que quase todos são ilegais. Agora diga-me o senhor: será este um país onde até as forças da lei e ordem compactuam com uma anarquia destas?”, questiona.

Uma paragem feira

Porque todas as viagens têm um ponto de partida e chegada, às viaturas que circulam na Dona Alice “desembocam” na improvisada paragem do mercado Xiquelene que, apesar de não ser licenciada, ganhou uma popularidade enorme, tornando- se, a referência e o principal ponto de sobrevivência de muita gente. É aí onde desembarcámos quando eram 7h20.

Na paragem, que na verdade é uma autêntica feira, vende-se quase tudo e mais alguma coisa. Há vestuário novo e de segunda mão, aparelhos de som e seus respectivos discos compactos, quinquilharias, alimentos frescos e industrializados, sendo que a maior parte é transaccionada em péssimas condições de higiene, sobretudo os frescos. É claro que aquilo é uma fonte de vida, mas também não deixa de ser um atentado à saúde.

Quando nos encontramos, a jovem de corpo magro e fragilizado pelos duros combates da vida, transportava à mão um conjunto de produtos, entre os quais alguns rolos de papel higiénico, pomadas, pastas dentífricas e sabonetes. “Saio todos dias do bairro Inhagóia para aqui. Vendo estas coisas para alimentar o meu pequeno Gabito”, diz ela acrescentando que as coisas lhe correm sem sobressaltos e em media por dia ganha 200 meticais. “É uma rotina difícil, assim como nada é fácil nesta vida”, reconhece.

Enquanto conversamos, uma voz aguda ecoava entre as multidões: “Cinco meticais, cinco meticais, cada camisa. Aproveite porque estamos em promoções”, que gritava era Antoninho, um jovem de Inhambane cuja presença no local se justifi ca pela busca de boas condições de vida.Activo e destemido, o rapaz de 24 anos dedica-se à venda de roupa usada há nove meses.

Ao contrário da primeira, este tem poucas responsabilidades, pois arrenda uma casa no bairro de Hulene com dois amigos e no fi nal do mês dividem a conta. “Eu trabalho para mim mesmo. Uma parte do que ganho aqui vai para os meus irmãos mais novos em Homoíne e o resto sirvo para mim”, conta acrescentando que além de inclinação para promover produtos acalenta o sonho de um dia ser empresário, “sinto que vou chegar lá”, disse a terminar.

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