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No dia em que Hélio não voltou para casa

No dia em que Hélio não voltou para casa

Já passa das 10 da manhã e a circulação automóvel no interior da cidade de Maputo, à medida que o tempo passa, é cada vez mais reduzida. Nesta quarta-feira, primeiro dia do mês de Setembro, o exíguo número de veículos faz lembrar os anos de 1993/ 94, quando a capital moçambicana era percorrida quase exclusivamente por viaturas da ONUMOZ, a força de paz que as Nações Unidas destacaram para Moçambique, logo após a assinatura do Acordo Geral de Paz, rubricado em Roma, em Outubro de 1992.

Ao cimo da luxuosa Avenida Kenneth Kaunda – ficam aqui muitas residências dos embaixadores estrangeiros e de altos dirigentes do partido no poder -, já depois da Praça da OMM (Organização da Mulher Moçambicana), a nuvem de fumo adensa-se e uma ligeira brisa transporta o odor desagradável da borracha queimada. As fogueiras de pneus traçam a fronteira: da Praça para baixo e para a direita, em direcção ao bairro do Polana Caniço, fica a “cidade de caniço” que se desloca diariamente para trabalhar para a outra, para a “cidade de cimento”.

Mas hoje, contrariamente à rotina de todos os dias, quase ninguém veio trabalhar.

Desde as seis de manhã que os chapas não ousam fazer-se à estrada. A propalada greve, convocada na véspera por sms, está a ter uma aderência de quase 100%. Os cerca de dois milhões de moçambicanos que protestam contra o desmesurado aumento do custo de vida registado nos últimos dias, estão dispostos a levar o seu protesto por diante e chegar à cidade de cimento, “àqueles que têm poder de decisão”, refere um popular que caminha em passo apressado tentando alcançar a Praça antes da chegada dos manifestantes àquela zona.

Ninguém passa para o cimento

O bruá da multidão é cada vez mais sonoro e a cadência dos passos intensifica-se, sinal que a turba se aproxima rapidamente da Praça. Momentos antes, três veículos carregados de polícias munidos de metralhadoras AK 47 – armamento da PRM (Polícia da República de Moçambique) – tomam posições ao longo da Praça. A multidão chega ao local e a tensão aumenta à medida que crescem as palavras de ordem que clamam por justiça. Os tiros de aviso, sinal de intimidação, sucedem-se.

O descontrolo entre os polícias é grande, e a turba, cada vez mais vociferante, entra na Avenida Vladimir Lenine, tomando a direcção da Baixa da cidade. Agora as ordens parecem claras: ninguém pode passar para o cimento. Rapidamente tudo se precipita e os disparos, exclusivamente da polícia, tomam as mais variadas direcções, com dois deles a deixar um corpo já cadáver e outro em estado grave que acaba por ser socorrido por uma carrinha da Cruz Vermelha. A turba, essa, recua, voltando à procedência. No alcatrão, jazem dezenas de chinelos que o pânico deixou para trás.

“A Frelimo é que está em guerra connosco”

Agora, os disparos vêm lá de baixo, da esquina das Avenidas Joaquim Chissano com a Acordos de Lusaca. Aqui já estamos em pleno caniço e o fumo e fogo que brotam dos pneus e dos troncos de madeira toldam a visibilidade. Na Acordos de Lusaca há mais disparos e gente a fugir. A notícia de dois jovens atingidos por balas reais corre célere, tão célere quanto a turba a dispersar.

Um dos polícias interrogados por nós não confirma a notícia e remete esclarecimentos para o comandante que está na Praça dos Heróis, a mais de dois quilómetros de distância. Sob agitação e alguns tiros corremos para o local. “Já levaram uma criança que estava ferida por bala”, revela um transeunte. “Isto é fogo real. Vocês têm de escrever que a polícia está a matar o povo inocente e indefeso”, enquanto isso outro popular puxa-nos para o outro lado da rua em direcção a uma criança que jaz cadáver, coberto por uma capulana.

Do seu lado esquerdo repousa a pasta com os livros da escola. Do lado direito, uma enorme poça de sangue testemunha a brutalidade do disparo. “Atingiram-no aqui na cabeça”, berra uma mulher indignada, enquanto levanta o improvisado sudário. “Chamava-se Hélio tinha 11 anos e regressava da escola quando foi atingido”, diz-nos Albino Massinga, pedreiro de profissão e activista em várias organizações cívicas. “Estamos contra o aumento do custo de vida, é um protesto legítimo. Eu vivo com menos de 50 meticais por dia. Se a manifestação existe é porque as pessoas não estão contentes. Eu saí de casa porque senti o peso que outras pessoas que estão aqui sentem. Dói sermos explorados injustamente.”

E continua: “Nós votámos neles [Frelimo], mas a Frelimo não é aquela pessoa que está hoje na cadeira do poder. A Frelimo foi um partido que sempre quis dar o melhor ao povo desde os tempos de Samora Machel. E os actuais dirigentes não sentem pena desta gente que está cada vez a sofrer mais?” Depois teceu comparações com a vizinha África de Sul, onde vários sectores estão em greve há duas semanas: “Lá, nas manifestações, participaram pessoas da alta sociedade, como médicos, professores, engenheiros e aqui é só gente da classe baixa. Mas é essa gente desfavorecida que vota na Frelimo e, no entanto, a Frelimo esquece-a. E se eles pensam que esta classe baixa não é capaz de mudar este estado de coisas estão enganados. A Frelimo é que está em guerra connosco. Não somos nós que estamos em guerra com a Frelimo.”

Agora, as pessoas em volta do corpo de Hélio concentram- se em grande número. A indignação cresce, quando falam de uma criança indefesa que foi atingida por uma bala quando regressavam da escola. “Queremos justiça! Os assassinos estão fardados! Isto não é bala perdida. Bala perdida não atinge cabeça.” A polícia volta a investir e o povo volta a procurar refúgio entre as pequenas habitações de blocos que a falta de dinheiro não deixou concluir.

Ouvem-se berros: “Vamba Caya! Vamba Caya!”, que em changane, língua do sul de Moçambique, signifi ca vai embora para casa. Volvida uma hora, um carro da Cruz Vermelha chega para recolher o corpo.

Hoje, ao contrário de sempre, Hélio não irá para casa depois das aulas.

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