O Jurista Moçambicano que se notabilizou ao despoletar o caso Diana, Inácio Mussanhane, considera o tráfico de seres humanos em Moçambique como sendo um fenómeno com menos divulgação no próprio País, mas com repercussões graves nas comunidades. Em relação a muitos países do Mundo onde casos relacionados com o tráfico de seres humanos têm merecido maior abordagem por parte das entidades competentes, como forma de chamar a atenção a opinião pública sobre a ocorrência do fenómeno, em Moçambique o cenário revela-se contrário.
Maior parte de casos de tráfico de seres humanos em Moçambique são reportados através de relatórios promovidos por organizações internacionais, nomeadamente a Organização Internacional de Imigração (OIM), Amazing Grace Children Home da África do Sul, uma organização envolvida no combate ao tráfico de pessoas que opera em Malelane, junto a fronteira de Ressano Garcia, cerca de 100 km de Maputo.
Por exemplo, o último relatorio de tráfico de pessoas referente ao ano 2010 que recentemente serviu de tema para um seminário de três dias, ocorrido em Mbabane, capital do vizinho Reino da Suazilândia, orientado pelo Jurista norte americano Margo Brodie, refere que o tráfico de mulheres moçambicanas e swazis com destino a África do Sul são efectuados por células constituídas por cidadãos chineses ligados ao crime organizado. E as vitimas, neste caso mulheres e crianças, são levadas para fins de prostituição e trabalho forçado.
A nível do País constata-se que são poucas organizações ligadas ao combate a este tipo de crime que próduzem relatório sobre o tráfico de seres humanos, como também são raras vezes que os activistas sociais aparecem a divulgar informação referente a matéria referente a este fenómeno a nível das comunidades.
Segundo o Jurista moçambicano Inácio Mussanhane, o tráfico de seres humanos no Mundo actualmente é apontado como um crime mais hediondo da era moderna após a escravatura, daí não entender porque razões as campanhas de informação não tem sido abrangente nas comunidades, beneficiando apenas as famílias que possuem os meios de receptores, neste caso televisões, rádio e jornais.
Em Moçambique, no cumprimento da Lei nº 6/2008 de 9 de Julho, a campanha de divulgação de informação sobre matérias ligadas ao combate ao tráfico de seres humanos é feita através de spots publicitários divulgados na única televisão pública do País (TVM), Rádio Moçambique (RM), jornais e cartazes. Em termo de custos, as campanhas de divulgação por via destes meios tem sido muito onerosos e, paradoxalmente, não abrangem maior número de famílias que residem nas zonas recônditas.
O que significa que a informação sobre o combate ao tráfico de seres humanos a nível sobretudo das zonas rurais, onde se presume maior ocorrência do fenómeno, é quase inexistente – como confirma João Carlos
Fixone, Chefe da Localidade de Zimuala, Distrito de Machanga, Sul da Província de Sofala, uma região com 1.500 habitantes. Fixone disse ao O Autarca que desde que foi indicado como chefe daquela localidade, nenhum dia se beneficiou de um seminário de capacitação sobre a matéria de combate ao tráfico de seres humanos, como tem acontecido com o HIV Sida que tem tido encontros frequentes. Razão pela qual não está em condições de abordar o assunto com a devida clareza junto a sua comunidade.
A mesma posição foi igualmente defendida pela Rainha da Ilha de Chiloane, também no Distrito de Machanga, que disse igualmente não estar em condições de comentar sobre este fenómeno por falta de uma capacitação ou informação sobre como prevenir a sua comunidade do tráfico de seres humanos.
Manuel Lole, Delegado Político Provincial da Renamo em Sofala Membro do Conselho do Estado Moçambicano, reconheceu em entrevista ao nosso jornal que no País existe menos divulgação sobre a matéria relacionada com a Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos, justificando daí a existência de muita gente sem o mínimo de conhecimento sobre este fenómeno, sobretudo os iletrados que vezes sem conta chegam a cair na rede sem se aperceber. O político atira culpa aos governantes, a quem acusa de nada estarem a fazer para assegurar maior divulgação de informação respeitante ao fenómeno.
Reforçou o seu pronunciamento afirmando nunca ter visto algum Partido Político em Moçambique a debruçar- se sobre o assunto nos seus manifestos eleitorais, o que na sua opinião representa falta de vontade política para travar esse mal social.
Feliciano Matique, um destacado membro da Sociedade Civil em Sofala (faz parte do Fórum Provincial das Organizações da Sociedade Civil de Sofala, abreviamente designado por FORPROSA, igualmente reconheceu tratar-se de um facto a ineficácia das campanhas de divulgação dos instrumentos legais de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos no País. Afirmou que esta lacuna está a contribuir para o sucesso dos traficantes no seio das comunidades, sobretudo a nível dos distritos onde existe muita gente em estado de vulnerabilidade devido fundamentalmente a pobreza e o analfabetismo.
Daí que defendeu a necessidade urgente sobretudo dos políticos, organizações da sociedade civil, líderes comunitários e religiosos começarem a desencadear com mais seriedade as campanhas sobre o fenomeno, de tal maneira como fazem em relação ao HIV Sida.
Matique acredita que havendo maior disseminação de informações sobre o tráfico de seres humanos vai permitir muita gente estar preparada para identificar as redes de traficantes e sua forma de agir, além de do resgate das vítimas.
Cidadão conta como os traficantes procedem
Nos últimos tempos o tráfico de seres humanos em várias partes do território nacional é tido como preocupante mas virtualmente impune, porque não tem sido fácil surpreender os seus praticantes.
Segundo depoimentos de cidadãos que já lidaram com o fenómeno, para conseguir os seus intentos os traficantes geralmente usam pessoas com certa influência nas comunidades, por exemplo empresários e religiosos.
No caso de religiosos, relatos indicam que estes são usados para convencer as comunidades, dado o seu forte poderio de comunicação. Também agem como protectores dos praticantes, uma vez beneficiando do privilégio de serem considerados homens de fé facilmente conseguem fazer passar-se de inocentes ou vítimas de especulações.
O analfabetismo, aliado a falta de conhecimento sobre o fenómeno de tráfico de seres humanos, tem levado muitas famílias a ignorarem a existência da prática, facilitando deste modo as incursões das redes de tráfico de pessoas cujo grupo alvo sobretudo tem sido a esse nível.
O cidadão Ernesto Meque, que se dedica a actividade de venda de carne de caça, algumas vezes furtiva, na localidade de Zimuala, no Distrito de Machanga, confessou ao nosso jornal ter entregue o seu próprio filho à um suposto traficante que se fez passar por comprador de madeira. Segundo a fonte, o caso deu-se em 2002. Na altura ele acreditou no senhor que lhe pedira a criança alegadamente para cuida-la na Beira (cerca de quinhentos quilómetros), chegando a prometer estudos e melhores condições de vida.
Meque viria a recuperar o seu filho na Cidade da Beira, na altura quando o presumível traficante que se fez passar de empresário encontrava-se a tratar passaporte para a criança com o objectivo de leva-la a África do Sul. Ernesto Meque contou-nos ter despertado depois de receber alerta do seu irmão que reside na Cidade da Beira, o qual chamou-lhe atenção de que a criança podia estar a correr o risco de ser traficada.
Depois da comunicação com o seu irmão, imediatamente Meque rumou até a Cidade da Beira, tendo ambos encetado contactos que permitiram a localização do suposto traficante. Localizado e questionado da sua intenção de levar a criança para a África do Sul, o tal senhor alegou que não precisou comunicar os pais porque se tratava de um passeio de apenas um fim-de-semana.
Inconformado com a justificação do também suposto empresário, Ernesto Meque e o irmão pediram para entrar em contacto com a criança, tendo o presumível traficante tentado ludibria- los alegando que o miúdo encontrava- se no Distrito de Nhamatanda (cerca de cem quilómetros), enquanto na verdade estava em situação de cárcere privado num apartamento alugado no Prédio Brito, na Baixa da Cidade da Beira.
Depois de sofrer insistência, o suposto empresário acabou confessando a localização da criança e quando juntos chegaram ao apartamento, o mesmo alegou que voltava já, deixando- os com o miúdo. Daí o suposto traficante vendo que já havia sido descoberta a sua manha, desligou o seu telefone e fugiu até nunca mais se avistarem.
O empregado do apartamento havia sido instruído para nunca se referir do plano, tendo alegado que o miúdo se encontrava a casa a viver normalmente.
Tendo resgatado o seu filho, Ernesto Meque e o irmão levaram a criança de volta para o convívio familiar, mas desta vez no Bairro da Manga, onde residem até hoje.
Conforme explicou Ernesto Meque, optou por não levar a criança de volta a localidade de Zimuala, alegadamente para prevenir impactos psicológicos.
Entretanto, retornando a visão do conceituado Jurista Moçambicano Inácio Mussanhane, em outros países onde o combate ao tráfico é encarado com muita seriedade, as vitimas são acolhidas em centros específicos onde beneficiam de protecção adequada e acompanhamento especializado para recuperar o seu estado psíquico e moral; o que já não ocorre por exemplo em Moçambique onde voltam a estar a sua sorte – apesar do País dispor duma lei especifica que estabelece o mesmo princípio. Apenas as vitimas que chegam a sair do País é que algumas vezes beneficiam de repatriamento organizado pelo Estado.
A Lei 6/2008 de 9 de Julho, no seu artigo 23, preconiza o direito às vitimas de tráfico de permanência em centros de acolhimento apropriados com direito a assistência médica e alimentação adequada, avaliação do risco para sua segurança após o repatriamento.
Contudo, no caso do filho de Ernesto Meque sucede que mesmo antes e depois do resgate os progenitores não denunciaram o caso as autoridades competentes, excluindo-se, naturalmente, da assistência necessária que eventualmente o menor pudesse vir a beneficiar do Estado. Mas Meque alegou não ter encaminhado o caso as autoridades porque temia represálias, preferindo o silêncio como garante de segurança para a criança e o resto da família.
A esse propósito, refira-se, Inácio Mussanhane que foi distinguido internacionalmente pelo seu papel envolvente na prevenção e combate ao tráfico de seres humanos, defende que muitas vitimas desse fenómeno optam por não denunciar as autoridades por não confiar nelas. No entanto, muitas vezes preferem denunciar junto a activistas de organizações sociais ligadas ao combate a esse mal, daí a razão da existência no País de muitos casos que são reportados por essas organizações longe do conhecimento sobretudo das autoridades policiais, incluindo o próprio Ministério Público.
Os dados possíveis de buscar na Internet sobre esta problemática referem- se apenas a 2005, numa informação do Departamento de Atendimento da Mulher e Criança do Comando Geral da PRM, a qual indica o registo de 86 casos rotulados de rapto de menores de 02 à 10 anos de idade naquele ano, enquanto as organizações principalmente estrangeiras anunciam anualmente centenas e centenas de casos.
De acordo com o chefe do Gabinete das Relações Públicas do Comando da PRM Em Sofala, Feliciano Dique, este silêncio que se verifica na abordagem sistemática do caso não deve ser visto como falta de vontade, mas sim resulta da falta de conhecimento da Lei especifica.
Feliciano Dique apelou que ao nível da corporação as portas estão sempre abertas para atender casos de denúncia respeitantes a este crime específico como a tantos outros.
Explicou que as denuncias tanto podem ser presenciais como pela via telefónica encaminhados as esquadras e outras representações da Polícia mais próximas, e à nenhum denunciante a corporação deve obrigar a sua identificação.
A prevenção e o combate ao tráfico de seres humanos como acontece com outros crimes, exige o envolvimento de todos os cidadãos e instituições.