Teve início esta segunda-feira e prolongou-se até quinta-feira, a 1ª edição de “Escritas no Índico – Salão do livro de Maputo”, um evento cultural organizado pela editora Ndjira e que teve como cenário o salão nobre dos CFM. No final, numa coisa estão todos de acordo: é necessário que circulem muito mais livros entre os países de língua portuguesa.
Celso Muianga, em representação desta editora, fez as honras da casa, traçando o retrato de como tudo surgiu no Salão do Livro de Tenerife (Espanha) no ano passado. “Verificámos que nós (escritores da África lusófona) só nos encontrávamos fora de casa. E pensámos: Porque não promover encontros nos nossos países? Foi assim que surgiu em Angola, em Novembro do ano passado, o evento “Ler é uma festa”, organizado por Jacques dos Santos, da Associação Chá de Caxinde em parceria com outras editoras e demais entidades”, referiu Muianga.
Nesse encontro de Angola, embora a literatura dominasse, também a música, a poesia, a dança e o teatro estiveram presentes. “Aqui também pretendemos fazer o mesmo”, sintetizou Muianga, para logo de seguida acrescentar que o grande objectivo destes encontros “é massificar a leitura, dotá-la de mais atracção, tornando-a um hábito entre os jovens.”
Nas “Escritas do Índico” a literatura foi a única expressão cultural presente, com destaque para as palestras, os recitais de poesia, o lançamento de livros e as maratonas de leitura.
Estudar sem livros
Nesse mesmo dia da abertura, o colunista e comentador político Machado da Graça, como representante da Associação Moçambicana de Editores e Livreiros (AMEL) – entidade que ainda está a ser criada, por isso disse ser “bizarro falar em nome de uma coisa que ainda não existe” – destacou a “gritante” falta de livrarias e de bibliotecas no país. “Acho que neste país só há livrarias em Maputo, Beira e Nampula e por outro lado há 33 pólos universitários. Eu não concebo uma cidade com uma universidade e sem uma livraria nem uma biblioteca porque não basta tomar nota daquilo que o professor diz na aula é necessário ler, ter uma cultura geral que só se retira dos livros. Acho que ainda hoje, apesar da internet, o livro ainda não tem substituto”, concluiu. No final deixou um recado: “Os editores e livreiros deste país, mais do que competidores, devem ser parceiros de modo a que os livros cheguem ao maior número de pessoas possível. É dentro desse espírito de parceria e partilha que surge a AMEL.”
Já Zeferino Coelho, director geral da editora portuguesa Caminho que tem praticamente o monopólio dos autores africanos em Portugal, mostrou-se mais optimista, afirmando que o panorama literário do país está bem melhor do que no passado recente. “Vemos muita actividade, surgem novas editoras, novos autores, há um movimento vivo e interessante nos jornais. Este encontro, não tenho dúvidas, vai impulsionar a literatura em Moçambique.”
Depois foi a vez de Tânia Tomé, poetisa e declamadora, “dar um cheirinho” do seu “Showesia” cantando e declamando.
O encontro terminou com a palestra “A Literatura de Língua Portuguesa – Histórias de um Percurso” em que intervieram as professoras Fernanda Cavacas, de Portugal e Rita Chaves, do Brasil.
Encantamento Português
Para Fernanda Cavacas – Mestre em Literatura e Cultura dos Países Africanos de Expressão Portuguesa e doutoranda em Estudos Portugueses na especialidade de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – em Moçambique nos últimos anos “foi feito um percurso imenso e nota-se uma grande apetência e vontade de ler por parte dos moçambicanos.” Depois recordou: “Em Portugal o estudo das literaturas de língua portuguesa começou por dizer respeito somente à literatura portuguesa.
Depois, abriu-se o quintalinho e começou a falar-se da brasileira. Há cerca de duas décadas, esse quintal abriu-se mesmo e passámos a falar das literaturas africanas de língua portuguesa. Começámos com uma grande vontade de conhecer, com muito entusiasmo. Ninguém pode conhecer e querer saber aquilo que não chega até ele. Aqui o trabalho dos editores é muito importante.
Mas ainda há um grande caminho a percorrer e, de facto, ainda hoje é difícil em Portugal os nossos alunos na universidade, nas graduações, terem acesso a muitos dos livros que se editam em Moçambique. Há aqui um caminho que a Caminho fez que é preciso continuar a fazer. Nós precisamos de ter os livros de autores africanos nos outros países e não é só em Portugal.”
Fernanda Cavacas defendeu uma cada vez maior circulação de livros entre os PALOP’s, porque só assim irão sair do ambiente dos estudiosos e académicos e passar para o público em geral. “A verdadeira festa da leitura é quando nos deixamos seduzir por tal personagem, pelo ambiente que foi recriado, por aquela situação que estamos a viver, quando nos apropriamos do livro.
Ora esta festa da leitura só pode ocorrer se tivermos acesso a esses livros. E temos de ter acesso a muitos, porque não vamos seguramente gostar de todos. Não conheço ninguém que goste de ler tudo. Nós temos o nosso próprio gosto. Os livros têm de rodar e correr entre nós. Isso é muito mais importante do que questões mesquinhas do acordo ortográfico. É preciso que passem mais entre os países, que circulem, porque os que chegam lá são muito apreciados.”
Terminou dizendo que os professores por si formados “estão ávidos por conhecer aquilo que os escritores moçambicanos escrevem e quando têm oportunidade de fazer formação nessa área, de conhecer, então se contactam o escritor ao vivo, é uma festa. “Há, efectivamente, um grande encantamento.” Descoberta Pragmática Rita Chaves, docente de literaturas africanas na Universidade de São Paulo, no Brasil, comungou da necessidade de circulação dos livros entre os países. “No Brasil, em relação à literatura africana, durante muito tempo trabalhámos com uma espécie de literatura fantasma.
O aceso dos alunos a ela era feito através das nossas edições ´piratas´, isto é, recorríamos a fotocópias, que era o único modo que tínhamos de fazer chegar aos alunos a palavra dos escritores africanos.” Rita foi dizendo que “interesse sempre houve. Começámos a ensinar literatura africana ainda nos anos ´70 e as independências dos países africanos de expressão portuguesa ajudaram nessa divulgação.
Esse interesse foi ganhando força e hoje deve haver umas 20 universidades, entre públicas e privadas, por todo o Brasil onde essas literaturas são estudadas. Durante muito tempo fui a única professora mas hoje já somos cinco professores de literaturas africanas de língua portuguesa em S. Paulo. Somos o maior núcleo do mundo (risos).” Posteriormente lembrou que este crescimento teve de lutar contra muitos preconceitos. “Apesar dos laços construídos entre o Brasil e os países africanos há uma relação muito complicada com África.
O Brasil sabia que África existia mas não era muito bom lembrar. Todo o percurso da literatura brasileira foi feito de costas para África.” A descoberta da literatura africana no Brasil “foi sobretudo uma questão pragmática, económica e isso abriu um espaço maior para a literatura africana.” E se no início as pessoas procuravam autores africanos para conhecer a história de África, já hoje “procura-se a literatura africana não como um lastro da realidade mas para despertar aquela necessidade de fantasia que nós experimentamos todos os dias.”
Ou seja, a literatura como fantasia também pode vir do continente africano. “Isso tem feito com que já se procure a literatura também nas teses de teoria literária, nas teses de antropologia e outras.”