O Verão descarregava toda a sua quentura no alvo do ambiente. Sim, parecia que o sol, com toda a sua vastidão, estava no topo das árvores. O chão aquecia como que, se pode imaginar, as paredes do inferno. Por segundo, mil grãos de areia, bem quentes como se tivessem sido torrados no atoleiro de lama, entravam no meu sapato de sola descolada a parte da frente, impossibilitando-me de esconder os dedos dos pés e, a napa rasgada, impedindo-me de esconder os calcanhares. Queimava os meus pés como se o diabo existisse só para maltratar a mim e a mais ninguém. Saía da escola.
Outros meninos da minha idade, de certeza, que fugiram às aulas para estar nas ruas a abocanharem montes e montes de ‘comes’ que lhes eram oferecidos pelos pais para o lanche, olhavam para mim, aliás, para os meus sapatos rasgados e riam-se apontando-me com os seus dedos oleosos de bolinhos fritos que comiam. Eu desejava lamber aqueles dedos. Ah sim, aqueles dedos só me espalhavam o pensamento. Pois faziam-me lembrar que se comia neste mundo em que eu quase não comia, aliás, a minha última refeição fora ao meio-dia do dia anterior, graças à titia Txeneka que pagou a dívida que tinha para com a minha mãe. O valor da dívida era insignificante, ou seja, apenas chegava para comprar uma xícara de arroz, uma cebola e algumas gotas de óleo vegetal.
Eu vinha da escola e os rapazes riam-se de mim.
– Olhem para o sapato dele.
– Ah, ah, ah, ah… parece boca de crocodilo.
– Eyheee… angwenyooo… Aquecia de verdade. Eu suava mas não era possível ver o suor a correr na pele.
Aquecia de tal maneira que o suor evaporava logo que aparecia. Os caminhos que me levavam à casa ficavam mais longos e cansativos do que noutros dias. Andei, andei…
– Ah, finalmente! – Disse eu.
Respirei fundo já no portão do quintal da minha casa. Como quem gozava, puxava os pés de tanto cansaço e levantava a poeira. Mas gozava com cuidado para evitar que os sapatos, já demasiado rasgados, ficassem mais rasgados do que já estavam.
Enquanto os pássaros pousavam, por vezes calmos e silenciosos, e, às vezes, agitados e barrulhentos, nos ramos da pequena laranjeira que com a ajuda de uma erva trepadeira dava uma sombra bem fresca ao quintal, a minha boa mamã descansava cortando as unhas das suas mãos naquela sombra sagrada. Digo sagrada porque era a única da casa. Mais sagrada ainda porque a mamã diz que era naquela sombra onde o meu falecido papá descansava e escutava os programas da Rádio Moçambique aos sábados quando não fosse trabalhar.
A minha chegada perturbou-a. Não queria que a mamã me visse, pois não gostava de deixá-la preocupada. Mas, ao mesmo tempo, queria que me visse pois, quem sabe, Deus teria operado algum milagre tal como aconteceu com o povo de Israel que se encontrava no deserto a caminho de Canã, a terra prometida. Apareci diante da minha mãe. Murmurei de boca tão seca como um pão torrado que eu tanto desejava que me aparecesse naquele momento. De olhos cansados como os de consumidores de aguardente, ou seja, tontonto, de braços baloiçantes como dois fios leves postos a descer agitados pelo vento e de pescoço longo e magro como o de um peru no momento de picar cereais, a fome era tudo o que ocupava o meu estômago.
– O que tem para comer, mamã?
– Nada, meu filho.