Sabes o que te digo, Maria da Luz, é que a rapariga não abalou por acaso, nem deixou os dois filhos entregues à madrasta sem saber o que estava a fazer. No nosso tempo é que a gente aguentava tudo. Bebedeiras, pancadaria em nós e nos miúdos, outras mulheres, insultos e desaforos.
Agora isso mudou. Foi a televisão, e as novelas, e os telejornais e aquelas raparigas que apresentam os programas que deram a volta a isto. É por causa delas que agora, por dá cá aquela palha, estes casais novos se separam e emparelham logo com o primeiro que encontram, quais mulas, percebes? Isto é tudo uma pouca-vergonha, toda a gente se casa e descasa, vivem juntos sem o consentimento de Deus, não teme nada nem ninguém.
Havia de ser no meu tempo, a gente começava logo a apanhar quase no berço, o meu pai chamava-lhe a dose, chegava a casa e ferrava a todos, da minha mãe aos meus irmãos e o cão era o último apanhar. Devo-me te habituado, porque a primeira vez que o Manel me levantou a mão, chorei, mas depois calei-me e até, vê lá tu, fiquei sem perceber se ele afinal tinha razão ou não.
Já não me lembro do que foi, se era a sopa que estava azeda ou eu tinha chegado mais tarde, mas a vida é isto, a gente anda cá para criar os filhos e aturar os homens, por isso é que quando vejo as mulheres lá daquela terra onde os americanos acham que se escondem o maluco das barbas que rebentou com as Torres Gémeas na América, penso que a gente ainda tem muita sorte, ao menos cá não nos tiram os filhos, nem nos matam à pedrada, podemos rir e falar, comer e beber à fartazana e de vez em quando o nosso homem até nos trata bem.
Mas aquela rapariga, santo Deus, ir-se embora só porque o marido anda metido com uma colega do trabalho. Então e depois? Qual é o homem que, mesmo sendo casado, não corre atrás de um rabo de saias? São todos iguais, Maria da Luz, olha o teu Aníbal que Deus tem, se não era a mesma coisa? E o Manel, quando era novo, que não largava a porta da Arminda? Todos iguais, é o que te digo.
Não eles não são como a gente, o sítio onde eles deviam Ter o coração, está lá uma bomba-relógio que explode se os tipos não se metem com as mulheres, percebes? Porque os tipos não engravidam, não têm dores como a gente, não têm que parir os filhos, dar-lhes leite e amor, só têm que chegar a casa ao fim do dia, comer e dormir. Tá bem, têm a bola e os copos com os amigos, mas não é isso que os ocupa.
E depois sabes, Maria da Luz, eles têm medo da gente. Têm medo que a gente não goste deles, que a gente os engane como eles nos enganam a nós, têm medo de nós porque somos diferentes, porque somos mulheres e eles não percebem nada da casa e dos filhos e disto tudo. Eu já sofri muito, Maria da Luz, como tu e todas as comadres daqui do Bairro Alto, mas a gente vê que as coisas mudaram, agora são elas que ganham mais e compram carros e mandam neles e sabes que mais?
Eu até acho bem, nunca percebi muito bem o que era a repressão porque a seguir ao 25 de Abril o Manel continuou a dar-me no lombo e a liberdade continuou a ser o nome de uma avenida, mas se eu pensar bem e for sincera, eu acho que a rapariga fez bem em abalar com o estrangeiro. Um dia vem cá buscar os miúdos e quem sabem lá na Alemanha a tratam melhor do que aqui. Sabes que eu podia ter feito o mesmo, quando era nova e cantava fado ali na casa do Tio Domingos.
Conheci um conde francês que também me queria levar para a terra dele, mas eu já namorava o Manel e olha, fiquei aqui no bairro, senti-me mais protegida e afinal para quê? Se fosse agora fazia como a outra e abalava daqui para fora, que só se vive uma vez e eu cansei-me muito desta que já vivi. E se ele fosse atrás de mim e me matasse, paciência. Quem vive menos, ao menos vive melhor.