Moçambique, uma nação cuja subsistência e segurança alimentar dependem intrinsecamente da agricultura, sempre reconheceu a extensão agrária como um pilar fundamental para o seu desenvolvimento. É através da interacção directa com os produtores rurais, da partilha de conhecimentos e da introdução de novas técnicas que a produtividade se eleva e as comunidades se fortalecem. Neste contexto vital, o programa SUSTENTA emergiu como uma iniciativa governamental ambiciosa, alinhada com os desígnios nacionais de combate à pobreza e promoção da agricultura familiar, contando com o apoio substancial de parceiros de desenvolvimento como o Banco Mundial e o Banco Africano de Desenvolvimento.
O sucesso do SUSTENTA, contudo, não residia apenas nas suas directrizes políticas ou no seu financiamento. Ele era materializado, diariamente, pelo incansável trabalho de mais de 2.278 extensionistas. Estes profissionais, actuando como a linha da frente, os facilitadores e os elos entre as políticas governamentais e a realidade do campo, foram a verdadeira força motriz do programa, dedicando-se a impulsionar a agricultura familiar em todas as províncias do país. A sua missão era clara: capacitar os produtores, introduzir inovações e, em última análise, transformar a vida nas comunidades rurais.
Acontece que a história destes extensionistas é marcada não apenas por dedicação, mas por um profundo sacrifício pessoal e um investimento financeiro que, agora, o Estado moçambicano parece disposto a ignorar. Hoje, com o programa SUSTENTA em fase de encerramento e uma nova política de contenção de despesas, esses mesmos profissionais vêem-se à margem, descartados após anos de serviço e um comprometimento que ultrapassou largamente as suas obrigações contratuais. A sua saga é um testemunho eloquente de como o “amor à camisola” pode, por vezes, custar caro demais.
O Dia-a-Dia no Campo: Entre Promessas e o Fardo das Motorizadas Himalaya NTX 125
A rotina de um extensionista rural em Moçambique é de um dinamismo e desafio único. Implica percorrer longas distâncias, muitas vezes em terrenos acidentados e sob condições climáticas adversas, para chegar às comunidades mais isoladas. Para isso, a motorizada não é um luxo, mas uma ferramenta de trabalho indispensável. No âmbito do programa SUSTENTA, foram fornecidas motorizadas da marca Himalaya NTX 125, modelos de 125cc projectados para um uso robusto.
No entanto, a realidade do terreno rapidamente expôs a fragilidade destes equipamentos. Relatos unânimes dos extensionistas indicam que, apesar de novas, as motorizadas eram de uma qualidade questionável. Um sintoma gritante e recorrente era a falha prematura do manómetro, uma peça essencial para o controlo da quilometragem e do consumo, que, em muitos casos, não durava sequer um mês. Esta falha precoce não era resultado de mau uso, mas sim de uma evidente deficiência de fabrico ou de uma inadequação do modelo às exigências do trabalho de campo intenso.
Diante de avarias constantes e da ausência de um mecanismo eficaz e atempado de manutenção por parte da entidade empregadora (o Estado), os extensionistas viram-se numa encruzilhada: ou o trabalho parava, comprometendo o avanço do programa e as comunidades que dependiam deles, ou assumiam os custos da manutenção. A escolha foi pelo segundo caminho. Por um profundo sentido de dever e, crucialmente, pela promessa recorrente de uma eventual absorção no aparelho do Estado, esses profissionais começaram a financiar, do seu próprio bolso, as despesas de manutenção, troca de óleo, pneus, seguimentos, pistões, jogos de transmissão, faróis, baterias, rolamentos, e até mesmo o combustível para as motorizadas que eram propriedade do Estado.
O Preço do Compromisso: Uma Conta Astronómica Paga pelos Próprios
O custo desta dedicação é estarrecedor. Estimativas conservadoras, baseadas nos relatos dos próprios extensionistas, indicam um gasto mensal mínimo de 6.000 Meticais por cada um, apenas para manter as motorizadas operacionais e o trabalho em andamento. Esse valor, que cobria desde pequenas reparações em oficinas locais até a compra de peças e combustível, multiplicou-se ao longo dos cinco anos de duração do programa.
Fazendo as contas, cada um dos mais de 2.278 extensionistas terá despendido, ao longo dos cinco anos de serviço, cerca de 360.000 Meticais do seu próprio pecúlio. Para colocar essa cifra em perspectiva, o valor de uma motorizada Himalaya NTX 125 nova em Moçambique situa-se, actualmente, na faixa dos 70.000 MT a 120.000 MT. Isso significa que, em média, cada extensionista investiu em manutenção e combustível mais do que o dobro do valor de aquisição do próprio meio de trabalho que o Estado lhes cedeu. Em essência, eles compraram, com o seu suor e recursos, não uma, mas múltiplas “motorizadas invisíveis” para garantir a operacionalidade do programa.
Este investimento pessoal, feito “por amor à camisola” e pela esperança de uma carreira estável, teve um impacto devastador nas finanças pessoais e no bem-estar das famílias destes profissionais, que muitas vezes já enfrentavam condições salariais modestas e atrasos no pagamento.

O Desfecho Amargo: Rescisão, Abandono e a Inaceitável Recusa do Diálogo
A culminar este cenário de sacrifício, o Governo de Moçambique, no âmbito de uma nova política de contenção de despesas na Função Pública – que prevê limitar novas entradas até 2028 e acelerar as aposentações –, decidiu descontinuar o programa SUSTENTA. Com a transição para uma nova iniciativa, o programa “Alimentar Moçambique”, anunciada para a campanha agrícola 2025/2026, a sorte dos extensionistas do Sustenta ficou selada: os seus contratos foram rescindidos.
A forma como este processo tem sido gerido é, no mínimo, preocupante e, no máximo, uma violação da dignidade e dos direitos laborais. Os extensionistas são confrontados com a realidade de que o Estado que beneficiou imensamente do seu esforço e investimento agora se recusa a sequer sentar-se para dialogar. As suas reivindicações por compensação pelos gastos incorridos e pelo reconhecimento dos seus anos de serviço são ignoradas, e a exigência de devolução dos bens (as motorizadas) que só funcionaram graças ao seu próprio esforço financeiro adiciona um insulto à injúria.
As Consequências e a Urgência de uma Intervenção
A marginalização destes mais de 2.278 extensionistas não é apenas uma questão de injustiça individual; ela tem implicações profundas para o futuro da extensão rural em Moçambique:
– Perda de Capital Humano Inestimável: O país está a descartar uma vasta experiência acumulada, o conhecimento local profundo e as relações de confiança estabelecidas nas comunidades – um activo que levaria anos e custos significativos para ser reconstruído.
– Comprometimento do Novo Programa: O sucesso do “Alimentar Moçambique” será minado pela falta de profissionais experientes e pela desconfiança que esta situação gerará. A moral de futuros extensionistas e a credibilidade das iniciativas governamentais ficam seriamente abaladas.
– Precedente Perigoso: A forma como esta questão está a ser tratada estabelece um precedente negativo, sinalizando que o sacrifício e o “amor à camisola” podem não ser reconhecidos ou recompensados, desencorajando futuras gerações de profissionais a investirem-se de forma tão dedicada.
Um Apelo por Justiça e Dignidade
A história dos extensionistas do programa SUSTENTA é um grito silencioso por justiça que precisa ser ouvido. Embora a dificuldade em provar cada recibo de manutenção seja um desafio, a consistência dos testemunhos de centenas de profissionais, o valor absurdo gasto em relação ao custo do equipamento e a própria evidência da durabilidade das motorizadas que, sem a sua intervenção, não teriam resistido, constituem uma base sólida para a reivindicação.
É imperativo que a sociedade civil, os sindicatos e os meios de comunicação social em Moçambique quebrem o silêncio e dêem visibilidade a esta grave injustiça. O Governo de Moçambique tem o dever moral e legal de reconhecer o sacrifício destes profissionais, compensá-los devidamente pelos danos materiais e morais sofridos, e garantir que a sua experiência seja valorizada no futuro da extensão rural.
Porque, em última análise, sem o compromisso e o sacrifício desses homens e mulheres no campo, nenhum programa agrícola em Moçambique, por mais bem-intencionado que seja, terá verdadeiramente “pés para andar”.
