“A mim até incomodam quando estamos nos conselhos judiciais se discute qual é o tribunal que mais produziu. Nos primeiros conselhos judiciais eu perguntava aos colegas magistrados se o tribunal é uma máquina de produzir dinheiro. A pergunta nunca tinha resposta. Mas, infelizmente, temos que dizer isto: há esta preocupação em produzir dinheiro. Fazer mais dinheiro…” para o cofre do Estado e a repercussão tem sido a perda de foco relativamente à assistência jurídica, disse Pedro Nhatitima, Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo e ex-director do Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ), secundando uma questão levantada por Tomás Timbana, Bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique, que se indignou pelo facto de as custas judiciárias serem elevadas e defendeu a necessidade de serem modestas.
Na semana finda, o Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, através do IPAJ, realizou uma Conferência Nacional sobre a Provisão do Acesso à Justiça e ao Direito”, subordinada ao lema “40 Anos Consagrando a Assistência e Patrocínio Judiciário em Moçambique”. Ficou evidente que o acesso à justiça, condição indispensável para o exercício da cidadania e do pluralismo democrático, continua longe de satisfazer as expectativas do cidadão de “pés descalços”, mormente os que, segundo as estatísticas, vivem abaixo da linha da pobreza.
Pedro Nhatitima e Tomás Timbana não precisaram quanto é que um indivíduo, por exemplo, despende para ter um acesso à justiça formal, num país vasto como o nosso, onde as instalações que fornecem estes serviços se encontram a dezenas ou mesmo a centenas de quilómetros das comunidades. Porém, o certo é que a tramitação de processos exige valores de que a maioria da população não dispõe.
Naquele encontro, muito pouco ouviu-se falar da habitual morosidade na tramitação de processos, da ineficiência do Estado em garantir um direito por si plasmado na Constituição da República, do número reduzido de tribunais e do seu funcionamento que não satisfaz o povo; não porque os problemas tenham sido ultrapassados, mas, sim, porque “os crescentes desafios emergentes na sociedade moçambicana, cada vez mais globalizada”, pressionam a Administração da Justiça de tal sorte que surgem novas dificuldades e impõe-se uma boa gestão do sistema, “organização, respostas apropriadas” e pessoal competente, defendeu Lúcia Maximiano, Procuradora-Geral Adjunta.
Tomás Timbana, que orientou a sua apresentação à volta de tantos outros problemas que constrangem o andamento da justiça em Moçambique, manteve a sua postura crítica ao sistema, tendo defendido que as custas judiciárias determinadas pelo Estado são um impedimento ao acesso à justiça. Na sua óptica, actualmente, verifica-se uma ignorância da lei, o que é agravado pelo facto de haver advogados e magistrados com “cada vez mais dificuldades de ter uma boa visão do conjunto legislativo”. O desejável era que a justiça fosse “um serviço oferecido por pessoas com alguma qualidade”.
O Bastonário da Ordem dos Advogados lembrou que o número 01 do artigo 62 da Constituição da República, no atinente ao acesso aos tribunais, estabelece que “o Estado garante o acesso dos cidadãos aos tribunais e garante aos arguidos o direito de defesa e o direito à assistência jurídica e patrocínio judiciário”.
Para Timbana, as pessoas que recorrem ao tribunal por várias razões deviam ser sujeitas ao pagamento de um valor modesto e que observe um limite razoável. “Existem países”, pese embora poucos, “em que o processo é gratuito, mas no caso de Moçambique (…) o regime de custas judiciárias é mau, é pernicioso e devia ser alterado” para que seja mais “simples, claro (…)”.
“Parece-me que há um avanço na alteração do código das custas judiciais. Vamos ver nos próximos dias se é real ou é apenas para deixarmos de falar desta questão extremamente importante. Aliás, muitas vezes as decisões sobre as custas são condicionadas pelos próprios magistrados. Os juízes têm uma participação de emolumentos nos processos em que intervêm”.
O Bastonário acusou os funcionários das magistraturas judiciais do Ministério Público de terem uma apetência em “entrar nas questões cíveis, onde há muito mais dinheiro proveniente do pagamento das custas judiciais. Só o simples facto de um magistrado preferir ir para uma secção em detrimento da outra isto é pernicioso para a administração da justiça”, principalmente quando um juiz toma uma decisão que a piori sabe que lhe interessa. “O acesso à justiça encontra aí um grande obstáculo”.
Por trás das instituições e das leis há pessoas
No evento a que nos referimos, os convidados alistaram nas suas apresentações uma série de leis que ilustra as mudanças que houve na Administração da Justiça desde o período colonial. Pedro Nhatitima disse que o tema “40 anos Consagrando a Assistência Jurídica e Patrocínio Judiciário em Moçambique” não é apenas fazer um elencar de comandos normativos que têm estado a orientar o sector desde a independência nacional aos dias que correm – conforme fizeram muitos painelistas – é também falar de pessoas, porque estas é que estão por trás das instituições e das leis.
Reforçando as palavras do Bastonário da Ordem do Advogados, o Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, apelidado de “Cemitério de Processos” em virtude da inércia que o caracteriza, afirmou que as custas judiciárias são um forma de negação à justiça. Pedro Nhatitima disse a Timbana que se este precisar de um aliado para pelejar em prol da revisão e/ou eliminação das custas judiciárias, “estamos juntos”, até porque “todos juntos somos poucos para satisfazermos a fome de justiça do nosso povo (…)”.
Reagindo a uma questão colocada por um dos participantes na conferencia, Nhatitima reconheceu que o Ministério Público tem estado ausente nas sessões de julgamento, o que recorrentemente dita, ao nível da entidade a que está afecto, a emissão de recursos de anulação de sentenças, à luz do que está determinado no artigo 98 do Código do Processo Penal.
É preciso reconhecer que alguma coisa vai mal
Lúcia Maximiano, que falou do “Papel do Ministério Público na Garantia do Acesso à Justiça”, considerou que esta matéria corresponde às grandes inquietações e consequentes reflexões que têm sido suscitadas ao longo dos anos à volta da problemática da garantia do acesso à justiça e das atribuições do Ministério Público (…).
A Procuradora-Geral Adjunta disse que no país fala-se muito, e cada vez mais, de forma crítica de justiça e, normalmente, para se dizer mal dela. “Para se dizer que ela está em crise, o que significa” que se deve “ter a coragem e a humildade de reconhecer que algo vai mal, mesmo sabendo que a crítica também se deve a um fraco ou conhecimento limitado da situação abordada (…). É importante que num país em que se procura cada vez mais justiça e paz se avalie por que razão a justiça estará aquém das espectativas do povo e o que deve ser corrigido”.
Num outro desenvolvimento, Lúcia indicou que em resultado dos esforços empreendidos ao longo dos anos, a distância entre o cidadão e a justiça reduziu bastante, “mas ainda é grande e em muito casos é de natureza funcional e não de proximidade, pois temos procuradores e juízes nos distritos”.
Na perspectiva da magistrada, “a justiça deve ser mais célere, de qualidade, em quantidade razoável, com os milhares de processos” pendentes “reduzidos e resolvidos num tempo razoável (…)”.