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“18 anos depois, escrevi uma história sobre a guerra para me recuperar do trauma!”

“18 anos depois

Devido às suas proporções provocadoras que (nos últimos dois anos) fecundaram inúmeras reflexões sobre a condição de ser moçambicano, a obra teatral Culpado? – um enredo sobre o conflito armado dos 16 anos – conquistou um espaço cativo na história das artes moçambicanas.

Acompanhemos, em Junho, o impacto social de Lá Na Morgue, a nova criação artística do conceituado dramaturgo moçambicano Dadivo José. Depois de superar o trauma herdado da guerra, desta vez, o actor, que celebra 20 anos de carreira, quer desvendar os mitos que rodeiam a morte.

Durante os anos em que o país esteve em conflito armado que durou 16 anos entre a Resistência Nacional de Moçambique e a Frente de Libertação de Moçambique – 1976 a 1992 – muitos cidadãos moçambicanos testemunharam experiências tenebrosas. Uma dessas pessoas é o artista moçambicano Dadivo José. Sobre a sua experiência em relação à guerra, em conversa travada em exclusivo com @Verdade, José revelou:

“Quando tinha cinco anos, dormi em cima de uma árvore para escapar à morte. Porque nós sabíamos que eles – as pessoas envolvidas na guerra – andavam atrás de rapazes para matar e/ou recrutar para a guerra. Eu e o meu irmão mais velho decidimos refugiar-nos em cima de uma árvore. Este é um episódio que se reteve durante muitos anos na minha memória”. E mais “ouvi falar de um massacre de um senhor que foi degolado, a menos de um quilómetro da casa onde vivíamos”.

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Na verdade, estas e outras revelações foram feitas no âmbito de uma conversa sobre o encerramento das exibições da peça teatral Culpado? Combati Um Bom Combate da Companhia de Teatro Mahamba que em Julho próximo irá – se não ocorrerem sobressaltos – colocar em montra a peça teatral Lá Na Morgue.

Em cena uma conversa empolgante, rica em termos de crítica social, reflexão e de especulação, os actores Dadivo José e Ambrósio Joa numa peça montada pela encenadora moçambicana, Maria Atália, discutem sobre várias assuntos – o exercício da cidadania, questões ligadas à saúde sexual, à educação – pensados num contexto de pós- -guerra que durante longos anos os afastou, desestruturando as suas relações de parentesco e/ou de paternidade.

A dada circunstância, ainda na peça, chega-se a ter a impressão de que vários acontecimentos operados (ou não) no teatro da guerra continuam a influenciar o modo de vida de vários moçambicanos.

“Recebi uma informação de uma entidade superior para não encontrar, nem matar Jah Rule”, afirma Dadivo que faz o papel de General dando a impressão de que além da injustiça sofrida por alguns cidadãos, da estagnação económica que o conflito pregou ao país, da degradação de infra-estruturas sociais, aquele cenário originou muita perturbação mental em alguns moçambicanos.

Aliás, segundo Dadivo “isso é verdade porque a guerra decorreu num período de 16 anos em que inúmeras atrocidades sociais foram cometidas e glorificadas. Mas, antes de o conflito iniciar efectivamente – havia muitos aspectos referentes à conquista da independência que, pelo facto de não terem sido clarificados, se criou um clima de desentendimento entre os dirigentes políticos”.

Ou seja, “devemos perceber que num conflito beligerante sempre há histórias mal contadas. A nossa guerra (do período pós-independência) também teve histórias não e mal contadas. Por isso, se eu tivesse que mudar o título desta peça daria o de Histórias Mal Contadas de Uma Guerra Civil”.

É maluco…

Dadivo José lamenta o facto de, muitas vezes, a sociedade não perceber os distúrbios e perturbações mentais que se associam à vida de muitos moçambicanos.

Nesta perspectiva, revela que hipoteticamente “inventei um general que, uma vez terminada a guerra, foi impedido de regressar à sua terra. Porque ele era irreverente. E nessa irreverência suspeitava-se que iria revelar segredos que poderiam perigar a paz novamente”.

De qualquer modo, “quando muito mais tarde regressa ao ambiente social, o General questiona o valor de revelar a sua posição sobre o rumo que a sociedade está a tomar, bem como as causas de tal fenómeno. Afinal, na sua compreensão as pessoas não acreditariam nas suas palavras? Ele tornou-se uma pessoa e/ou fonte oral totalmente inutilizada”.

“Quantas vezes a sociedade se defronta com um cidadão perturbado mentalmente – a quem erradamente chamámos de maluco – a falar sobre assuntos sérios e não damos a devida atenção?”, questiona argumentando que o “mais caricato é que, várias vezes, temos o descaramento de reconhecer que antes de tal complicação mental o referido cidadão era uma pessoa inteligente”.

Mas, infelizmente, poucas vezes, senão nunca, “procuramos perceber a sua anomalia como forma de engendrar mecanismos de recuperá-lo e reutilizá-lo em benefício da sociedade”. É isso que sucede com o General na peça. Ele (só) tem muitas memórias da guerra, as quais aplica num contexto impróprio, como consequência do seu trauma.

Aliás, de acordo com o nosso interlocutor, para “uma pessoa que guerreou durante 16 anos, ainda que seja aparentemente longo, o período de 20 anos sem nenhum acompanhamento psicossocial não é suficiente para ressocializá-lo, assim como livrá-lo de eventuais complicações mentais”.

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Não se cultivam e tornam-se lambe-botas

Um outro mal social glorificado que ocorre na nossa sociedade- aliás ao que tudo indica quem não incorre em praticá-lo dificilmente prospera – e discutido na obra é o excesso de servilismo desprovido de moral, ética e dignidade. Ou seja, o lambebotismo.

Diz-se em cena que “agora é muito fácil controlar jovens revoltados”. Como? “Basta proibir-lhes participações em canais próprios. Talvez seja por isso que alguns ficaram com lábios queimados de tanto lamberem as botas presidenciais e acabam por se esquecer da verdadeira missão do jovem – questionar”.

Consequentemente, “o teu padrasto criou-te com muito carinho. Fez-te acreditar em grandes histórias”. Mas “ele, de filho do chefe do quarteirão, foi lambendo o c… de todos os que passaram pelo poder até se tornar uma figura importantíssima”.

Dito isso, quando se questiona até que ponto controlar jovens revoltados – aqueles que muitas vezes indagam, reflectem sobre os males sociais, engendrando mecanismos para estancá-los – pode ser negativamente impactante para um país que se quer afirmar, o assunto torna-se muito mais sério.

Afinal, “a juventude torna-se inerte, sem nenhuma capacidade de reflectir, de reagir, muito menos de questionar. Quero dizer, o jovem torna-se um velho que não experimenta nada. Pior ainda, ele torna-se um lambe-botas mesmo”.

Por todas essas razões, apesar de reconhecer que a culpa não é, necessariamente, da camada juvenil mas do sistema que nos dirige, “penso que as pessoas devem ter ideias próprias. Sobretudo porque é na juventude que se cria a personalidade. Não me interessa a quem os jovens querem seguir, mas não se devem tornar caixas de ressonância. Pessoas sem um discurso próprio, original e autêntico”.

Enquanto as pessoas não se cultivarem, não se construírem com base na leitura, sucederá que a juventude será debilitada. Pior ainda, uma vez enfraquecida, será alienada deixando-se submeter a circuitos fechados em que as suas acções são dirigidas pela ameaça de perder este ou aquele favor.

Sentimo-nos profetas

Portanto, é sobre estas discussões construtivas que durante um período de dois anos a Companhia de Teatro Mahamba associou na peça Culpado? três profi ssionais. O professor de arte e actor Dadivo José que escreveu e representou a história. Maria Atália que encenou o enredo, bem como o actor e estudante de Teatro Ambrósio Joa. Aliás, acerca destes dois artistas, Ambrósio Joa e Maria Atália, Dadivo José formula uma opinião fabulosa.

“O Ambrósio foi um dos melhores actores com quem já trabalhei na minha vida. A relação de pai e filho que criámos foi verdadeira. Mas penso que não devo dizer muito porque ele é meu estudante. Pode ficar convencido de que é bom e relaxar no trabalho, o que não lhe retira o mérito!

É com muita pena que ele abandonou a área de encenação para seguir a dramaturgia. Sinto que o que aconteceu é que este jovem artista precisava de seguir novos desafios. Além do mais, acredito que trabalhámos com uma grande encenadora, a Maria Atália. Neste momento, ela é uma artista promissora que o país possui!”

O outro aspecto interessante é que a dimensão política, crítica, provocadora e reflexiva que a referida peça possui, raras vezes, conseguiu servir ao grupo de baluarte. Isto equivale a afirmar que “trouxemos um tema muito complicado, nalgumas vezes no meio do medo. Mas fizemos porque os moçambicanos provaram-nos que gostam das artes. A complexidade do tema foi levada na desportiva”.

Recorde-se de que a obra de que estamos a falar foi estreada em Agosto do ano 2010. No entanto, Dadivo José esclarece que não se deve confundir a sua colectividade teatral com um grupo de agitadores sociais. “Mas se recordarmos que a nossa obra é protagonizada por um general desmobilizado da guerra, nada nos impede de pensar que as transformações sociais que se operaram no país, mais adiante, revelem, em parte, o impacto que a obra teve”.

O artista refere-se aqui à revolta que eclodiu nos dias um e dois de Setembro de 2010 em que os cidadãos moçambicanos, em Maputo, protestaram contra o elevado custo de vida no país, às controvérsias dos desmobilizados de guerra, que originaram inúmeras manifestações no país, assim como às peripécias que marcam os pleitos eleitorais em Moçambique. Sobretudo porque em Culpado? se defende que, infelizmente, no País da Marrabenta o voto é tribal.

“Realizámos continuamente a peça, percebendo que as pessoas se identificavam não somente com a história, como também com as peripécias que se desenrolavam na sociedade”.

É por isso que, “nalgum momento sentimos que estávamos a reproduzir o sentimento dos moçambicanos ou de qualquer mortal humano que estima emitir alguma mensagem para a sociedade mas que, por diversos motivos, não consegue. Mais importante ainda, sentimo-nos profetas porque nos antecipamos aos acontecimentos”.

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Arte é terapêutica

Com um elenco de duas pessoas – ele e uma figura do sexo feminino por seleccionar – a nova obra da Companhia de Teatro Mahamba, que se chama Lá Na Morgue, será encenada por Maria Atália e exibida a partir do mês de Junho do ano em curso. Perguntámos a Dadivo José sobre a temática da obra, bem como os motivos que orientaram a sua criação.

O artista recorda-nos, antes de mais, de que as suas obras teatrais tiveram origem em conversas informais que trava com as pessoas sobre os assuntos que lhes preocupam. No processo recolhe dados que, uma vez completos constituem um drama.

Mas mais do que isso, o mais importante é a compreensão de que “a arte é terapêutica. Por isso, uma forma que encontrei para me curar do trauma que tive da guerra dos 16 anos foi escrever uma história sobre o tema. Ou seja, desenvolver um enredo sobre o conflito bélico visto 18 anos depois, assim como o temor que tenho da morte”. Aliás, “ninguém quer saber da morte. Mas a minha pergunta é: o que sucede com as pessoas que diariamente lidam com os cadáveres?”

Não há dúvidas de que há pequenas histórias que as pessoas que trabalham na morgue experimentam. De qualquer modo, se “Culpado? foi uma peça que exigiu muito do grupo, porquanto tenha sido intensa, Lá Na Morgue será algo mais relaxante. O que eu não sei é se, em tal obra, o público irá cenas de brincadeiras. Porque ela ganhou grandes contornos”.

Alguns trabalham na morgue

Antes de mais, vale a pena referir que nos vários cursos de licenciatura que o nosso interlocutor fez sempre defendeu teses que se relacionam com a história. É por essa razão que aquela área do saber é notória nas suas obras de arte.

Em Lá Na Morgue o dramaturgo pretende, em parte, retratar a vidas das pessoas que logo a seguir à independência nacional se engajaram no associativismo cultural no país. Artistas que, por exemplo, criaram a Companhia Nacional de Canto e Dança, o grupo de Teatro Tchova Xi Ta Duma, entre outros.

Facto curioso é que, no seu ponto de vista, a maior parte de tais figuras (nos dias que correm) deviam ser grandes referências de activismo cultural. Mas não o são porque, ao compreenderem que as artes não lhes davam indicações de posicionar-lhes nos patamares de destaque social, abandonaram-nas.

Actualmente, muitos deles tornaram-se PCA´s de determinadas empresas. Outros ainda, não conseguiram. Trabalham na morgue. Uma questão que se pode colocar em relação ao fenómeno tem a ver com as razões da sua ocorrência.

Como acontece com todos, sabe-se que defenderam a história. Mas as elites que se formaram beneficiaram alguns e sacrificaram outros. Afinal, a nossa história protege muito aqueles que combateram, que fizeram parte de determinada geração.

Ou seja, “todas as pessoas que tiveram a sua importância naquele momento são exaltadas. Mas a nossa experiência manda-nos dizer que nem com essa inércia histórica foi possível defender todos por causa da força da corrupção”.

Consequentemente, o grupo dos vulneráveis questiona-se: “Porque é que isso acontece comigo? Pior ainda, “isso só está a suceder porque é comigo. Assim, voltámos à velha história. Será que a justiça moçambicana só defende os tubarões ou também apanha o peixe miúdo?”

A grande reflexão

Enfim, no meio de mitos e mistérios que rodeiam os cadáveres, designadamente o poder da morte (?), – segundo o qual a água que se utiliza para lavar os corpos, uma vez aspergida em qualquer residência, à noite, enquanto as pessoas dormem -, atiça a sonolência, escondendo-se um problema sério por analisar.

Ou seja, o importante aqui não é a utilidade do líquido mas a forma melindrosa como ele é retirado da morgue.

Mais grave ainda, quando se equipara esta reflexão ao campo da segurança do Estado moçambicano, uma pergunta mais séria ainda pode ser formulada: “Como é que um marginal tem acesso às armas num país em que o seu porte é restrito a um grupo social muito limitado?”.

Enfim, se o Teatro Mahamba irá encenar a obra Lá Na Morgue, em parte, pela necessidade de o seu autor tencionar contar a “história de um sujeito que foi um grande activista cultural mas que, por diversos factores da vida social, passou a trabalhar na morgue, onde se diverte com os cadáveres, agindo contra todos os princípios éticos e morais”.

Nós iremos assistir movidos pela curiosidade de perceber até que ponto a perda de valores na sociedade nos pode valer a banalização de aspectos sagrados da nossa existência como a morte, por exemplo.

Humildade que me irrita

O outro aspecto que (no percurso artístico de Dadivo José) torna o ano 2012 singular é o facto ter sido no princípio do mesmo que, cerca de 40 anos depois, o artista teve a oportunidade de ser o protagonista do musical “O Lobolo e as 30 Mulheres de Muzelene”. A referida obra foi escrita pelo célebre dramaturgo moçambicano Lindo Nhlongo.

Acerca do seu percurso artístico, Dadivo afirma que “foi bonito, feio, difícil, irritante mas, acima de tudo, algo que actualmente me dá orgulho. Tornei-me docente de artes dramáticas. Defendo uma corrente concreta no teatro. E mais, não falo barato, tenho mostrado obras. Sou um artista respeitado e que se quer modelo para os mais novos. Congratulo-me por ter ajudado muitos artistas a evoluir.

De uma ou de outra forma, “devo reconhecer que percorri um caminho longo. Fiz um percurso que, nalgumas vezes, me levou à descrença porque tive que vencer muitos obstáculos, incluindo no seio familiar. Lutei para que a minha família aceitasse a minha condição de artista”.

Mesmo no fim da conversa Dadivo José não perdeu a oportunidade de, acerca de sua experiência no musical O Lobolo, considerar o seguinte:

“A coisa que mais gostei no musical O Lobolo e as 30 Mulheres de Muzelene foi a oportunidade de trabalhar com aqueles embondeiros da música moçambicana.

A possibilidade de ombrear com personalidades como Ernesto Chimanganine que, neste momento, é o único moçambicano que toca bandolim. O contacto com a Orquestra Djambo, um grupo sobre o qual aprendi que através da Marrabenta reivindicou a independência nacional.

Trabalhar com os Galetones… foi muito importante perceber que todas essas figuras lendárias na história das artes moçambicanas são um poço de humildade! Eles têm a humildade que me irrita, porque possuem todos os requisitos para serem pessoas arrogantes e não o são! Fazem arte genuína, tudo o que eu gostaria de poder fazer.

Ora quando vejo jovens que nunca fizeram nada e nem sei se algum dia – historicamente – farão nas artes, pergunto-me como seria bom se eles (os jovens) pudessem ter apenas cinco minutos de convívio com os nossos génios”.

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